1. dicotomia
Nas tardes frias de inverno, adorava sacudir a ponta dos dedos molhados em cima do fogão a lenha na casa da vó.
Gostava do estalinho que as gotículas provocavam sobre a chapa quente.
Minha mãe dizia que a água fria no ferro aquecido deixava o fogão manchado.
Descobri, na prática, que diversão e beleza nem sempre andam juntas.
2. axolote
quisera eu regenerar o coração
em poucas semanas
recuperar feridas sem deixar
cicatrizes
evoco Cortázar
não sei parar o tempo
só sei que me reconstruir
dói
e nunca acaba
3. transitivo direto
deixa gostar
devagarzinho
com o fascínio que descreve a curva da cintura
ou a leveza das costas [nuas] estregues às pontas dos meus dedos
deixa
gostar
com o divertimento da língua que toca o morango [doce] aos poucos
ou o jeito magnético que os olhos se contraem quando sorri
deixa.
4. perto do coração selvagem
disse
que eu parecia Clarice escrevendo
densa?
não, monotemática
a referência não era Lispector
era Clarice Falcão
e o tema era ele
monomania
5. hole in one
preferia já não sentir tanto
[sinto muito
aprendi a desprender
[não sei mais desenhar tua boca de coração
nem quebrar silêncios com leveza
sigo sendo tua musa
só no livro do Kundera
[insustentável
bem que dizia querer acreditar
numa religião que pregasse a ressurreição para passar a vida ao meu lado
[outra vida
só temos essa
creio na remissão dos pecados
no sentimento que ficou
[quem disse que o amor não foi feito pra durar?
6. Na alegria e na tristeza
É que a gente não casa com o
grande amor da vida, me disse
Lembrei quando ela entrou na igreja, séria e maquiada
Tinha um véu sobre o cabelo preso
Quase não a reconheci
Parecia outra
Apostava no felizes
para sempre
Casei de cabelos soltos,
unhas vermelhas
E buquê de pimentas
Subi ao altar sorridente e apaixonada
Mal sabia que minha intensidade era a deixa
para a história não durar
Quebrei os votos
Preciso aprender a gostar de amor morno