A voz de Gal Costa, que saía do toca-discos e se transformava em apresentação de dança ou de teatro, foi uma das mais presentes nos momentos lúdicos da minha infância. Eu e minha irmã inventávamos uma série de espetáculos embaladas pela MPB, mas eu amava mesmo era ouvir a Gal cantando “você, precisa saber da piscina/da margarina/da Carolina/da gasolina”. Baby era minha favorita e a versão dela cantando com Rubel ainda me encanta. Quando comecei a fazer aulas de canto, minha meta era conseguir cantar Folhetim, mesmo sabendo que nunca alcançaria aqueles agudos. E não é que deu certo? Bem antes do final do primeiro ano, eu já estava bem afinadinha fazendo shows para a família — como a décadas atrás.
Amava as capas dos discos de vinil Água Viva e Gal Tropical, em que ela aparecia muito musa, com flores nos cabelos e uma aura luminosa. Por que lembrei disso? Além do motivo óbvio da efeméride, guardei uma passagem do último livro que li do português Afonso Cruz: Nem todas as baleias voam. Nele, trata do projeto Jazz Ambassadors, em que a música seria uma espécie de arma; e de pessoas capazes de perceber sensações e sons de forma concreta. A escrita é bastante atraente, do jeito que ele está acostumado a fazer.
O trecho ao qual me refiro faz alusão ao Museu do Sentido da Vida, cuja explicação aparecia em um folheto: “Um museu onde crianças com doenças terminais pegam em caixas de sapato, uma caixa por criança, e dentro da caixa colocam os objetos mais importantes das suas vidas. A sinceridade e a noção do essencial que permeia a vida de uma criança é uma lição para qualquer adulto (...)”.
Fiquei fascinada por essa ideia que é, ao mesmo tempo, triste e sublime. Tento pensar no que eu colocaria nessa caixa — pequena, um pouco maior do que meus pés — e como usaria meu poder de síntese para colocar tudo o que é/foi importante até então. O que valeria a pena lembrar, o que seria salvo da efemeridade.
Possivelmente escolheria objetos singelos que pudessem mostrar as relações, as partilhas, o amor... Nessa caixa não haveria espaço para objetos de valor material (que nem teriam por que estarem ali), mas talvez fotografias de viagens especiais, alguma gravação da voz das pessoas que amo — quando elas se vão, a gente demora a entender que nunca mais vai ouvi-las chamar nosso nome —, desenhos em papel, bilhetes cheios de carinho. Talvez quisesse pensar em um roteiro minimamente organizado, para que quem pegasse aqueles objetos conseguisse fazer alguma leitura das subjetividades que me constituem e em como algumas presenças e interações ficam guardadas, em como energias se entrelaçam e em como canções, como Baby, acabam permeando a existência.
Por enquanto, vou tentando aumentar essa coleção sem precisar selecionar nenhuma das minhas favoritas e perseguindo essas interações que mereceriam entrar nessa caixinha.