Se os mortos não morrem, quem é dono do passado?
Essa pergunta dá título ao 12º capítulo de O Mapeador de Ausências, romance do moçambicano Mia Couto, e a considero oportuna e reflexiva para uma semana com efemérides e perda de mulheres talentosíssimas que souberam se sobressair à relação com o tempo-espaço.
Começo pela mais recente, a morte de Elza Soares, a voz do milênio. Certa vez, ouvi de uma amiga que uma das maiores tristezas que tinha ao pensar no pai morto era saber que nunca mais iria ouvi-lo. Tinha medo de esquecer-se da voz dele, a forma carinhosa como se reportava a ela e ao irmão... Se ao menos tivesse se dado conta disso, poderia ter providenciado uma gravação ou algo assim. Mas a gente nem gosta de pensar nisso, né?
Chorei como um bebê quando recebi de um amigo, anos atrás, a entrevista que meu avô havia dado à rádio Caxias lá pelos anos 1990. Ele morreu em 1998 e, obviamente, nunca mais o tinha escutado. Foi mágico perceber que ele era exatamente como eu lembrava: fala mansa, pensamento rápido, jeito espirituoso e cheio de histórias. A voz o trouxe de volta a um lugar que eu nem sabia que me faltava.
Essa mágica é, talvez, o grande trunfo de Elza. Dona de uma história sofrida, da pobreza ao estrelato, passando por relacionamentos abusivos e tomada de consciência do poder feminino que tinha dentro de si, ela se eternizou não só pela vivência ou gama de frases maravilhosas que disse ao longo dos 91 anos — “Ser mulher é difícil. Negra, ainda muito mais. Mas, se você parar porque é negra e é mulher, não chega a lugar nenhum”; “Acho que vocês devem fazer o que vocês gostam. Me amem e se amem também”; “Cada porrada que eu levo, cara, é como se fosse um beijo. Já me disseram: Esse sofrimento seu! Não foi sofrimento, foi uma escola da vida. Eu aprendi muito”; “Temos que ensinar o medo a ter medo de nós” —, mas, principalmente, por seu canto. Por sua voz.
A mesma semana que marca a despedida de Elza, também marca os 40 anos da partida de Elis Regina (aos 36 anos), outra deusa, ainda considerada uma das melhores (se não a melhor) cantora do país. E muito se falou sobre ela, muitas homenagens e muitas execuções de canções em serviços de streaming. E sobre a forma que agia, que escolhia suas interpretações, como direcionava sua carreira e queria estar por dentro de tudo. E como se apaixonou e desapaixonou também. Acho que até quem não tem tanto interesse em cantar, gostaria de, ao menos um dia, abrir a boca e ter a sorte de ouvir aquela voz saindo...
A outra aniversariante da semana, Nara Leão, faria 80 anos se estivesse viva — morreu aos 47 anos. Nara e Elis, aliás, não se davam bem. Mas tinham intersecções em suas trajetórias, seja a paixão por Ronaldo Bôscoli, seja o repertório cheio de canções de Tom Jobim ou a passagem pela efervescência dos festivais da canção. Mas, especialmente, por escolherem um caminho a ser vivido — e o fazerem de forma inteira e visceral.
Se existe uma lógica nisso tudo é de que não importa muito o que aconteça, a gente deve perseguir a nossa voz. Aqui, como uma metáfora. É isso que faz os mortos não morrerem. É a tal transmutação, que permite aos mortos seguirem vivos e até emocionando.