Sábado de Lua Cheia, com eclipse lunar em Escorpião. Mas não se avexe. Desde que o mundo é mundo, eclipses fascinam e assustam, pelo que alteram na dinâmica de luz e sombra nos movimentos de Sol e Lua. Lembro-me do primeiro eclipse solar que presenciei quando criança. O dia virou penumbra, as galinhas corriam aos cacarejos na direção do poleiro, surpreendidas por aquele inusitado anoitecer. Minha avó rezava o terço, quem sabe rogando pelo reestabelecimento da ordem cósmica. E pouco depois o dia voltou ao seu fulgor nordestino. Ah, o céu e seus mistérios!
Para além de indicar alinhamentos orbitais entre os luminares, eclipses, na astrologia, são ativadores de grandes energias, pontos máximos das fases lunares durante o ano. Impactam mais no coletivo. Simbolicamente, sombras que emergem precisam ser integradas, ou curadas. Imagine nascer durante um eclipse! O propósito solar será tingido pela lida consciente com a sombra coletiva. Foi o caso de nosso poeta soberano, Carlos Drummond de Andrade, nascido durante um eclipse solar parcial em Escorpião, em 31 de outubro de 1902.
Quem pode negar que a obra de Drummond expôs as angústias e desalentos do humano sacudido por guerras, injustiças e falta de sentido? Quem pode negar a catarse criativa e iluminadora que sua arte nos oferece? Mesmo quando a luz apagou e a noite esfriou, você marchou, Carlos, mesmo sem saber para onde ir, a nos levar pela mão em resistência. A despeito da náusea, você nos mostrou uma rara flor urbana, que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
Mas precisamos também saber dos tesouros escondidos que possam vir à luz nos eclipses de Escorpião. Sim, o signo das profundezas da alma é também o dos tesouros enterrados. E agora citarei um, fruto da conexão artística entre Drummond e outro escorpiano de lei: Belchior. Incrível, mas ambos nasceram com Sol, Lua e Ascendente em Escorpião! Ambos com semelhantes níveis de intensidade na alma para abarcar e traduzir o sentimento do mundo.
Belchior adorava Drummond. Antes de tornar-se mais falado por sua estranha fuga do mundo, o cantor cearense lançou, em 2004, o álbum As Várias Caras de Drummond, com 31 canções criadas por ele a partir de poemas do mineiro. E com um fabuloso bônus gráfico: 31 gravuras com diferentes faces do poeta desenhadas ou pintadas pelo próprio Belchior, além dos poemas originais de Drummond. Infelizmente, uma joia desse quilate passou batida, sem repercussão quase nenhuma, mesmo tendo sido lançada em bancas pela revista Caras. Pior: segue esgotada até em sebos. Ao menos as canções podem ser ouvidas no YouTube.
Os versos finais de Sentimental dizem: “Eu estava sonhando... / E há em todas as consciências este cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”. Décadas depois, Belchior cantaria: “No tempo em que você sonhava / Amigo, eu me desesperava”. Havia perigo nas esquinas, tanto na de Drummond, no poema publicado em 1930, entre as duas guerras e com o fascismo no ar, quanto na do cearense, nos anos 1970, sob o jugo da ditadura militar. O sonho reprimido, para ambos, somente o potencializa — e essa força do interdito é muito peculiar a Escorpião.
Em Poesia, outro poema musicado, o poeta diz: “Gastei uma hora pensando em um verso / que a pena não quer escrever. / No entanto ele está cá dentro / inquieto, vivo. / Ele está cá dentro / e não quer sair. / Mas a poesia deste momento / inunda minha vida inteira.” Faróis, a voz densa de Belchior e a poesia de Drummond iluminam nossa vida inteira.