Perdido. Talvez ainda mais embaralhado por culpa do Chico, o Buarque, tratei de resolver o dilema da crônica de toda santa quinta-feira. Tem canções do Chico que parecem nos embotar de cimento e lágrima, deixando a dúvida pairando: já fomos atropelados ou iremos atrapalhar o tráfego logo ali, depois da próxima esquina? Ou ainda, turvos de incerteza: estamos rodando em um moinho ou é o tempo que dá voltas na gente?
A desculpa do Chico bem poderia ser a de Clarice Lispector. “Que fazer, se sinto totalmente o que as pessoas são e sentem?” Escrevo como se estivesse num boteco, só ouvindo essa gente toda falar e contar de si. E o Chico sentado num banquinho, a dedilhar o violão, nos entorpecendo em um doce lirismo elíptico. Parece ainda que vejo João Guimarães Rosa, contornando a mesa circular, tragando uma boa cachaça mineira, repetindo a frase de Riobaldo (ou seria Rosa mesmo falando): “Eu queria decifrar as coisas que são importantes”.
Verte, Riobaldo. Voragem, Caio Fernando Abreu. Sim, se o assunto é lutar pra dar conta de si atravessando portais e muros, dantes intransponíveis, Caio é a chave do mistério. “Por enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que me aconteceu (...). Uma turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez mais velozes, concêntricos, elípticos”.
De costas pra mesa circular, escorado no balcão, num canto à sombra, Borges, o Jorge Luis, atravessado pela voragem de Caio e incomodado pelo olhar revelador de Clarice, repete três vezes: “Não haverá nunca uma porta”. E logo a seguir, emenda: “Não esperes que o rigor de teu caminho/ Que teimosamente se bifurca em outro,/ Que teimosamente se bifurca em outro,/ Tenha fim”. Caio e Clarice, sorriem. Rosa mete outro gole da cachaça translúcida goela abaixo. Borges pede mais uma dose de ginebra.
E quem sai de trás do balcão, tirando o avental surrado? Ana Cristina Cesar, que atravessa o salão pra fechar a grade pesada de ferro. Debochada, depois de trancar os convivas no boteco, diz: “Pergunto aqui se sou louca”. Dessa vez, até Borges, ainda de costas, sorri. Depois de servir uma rodada de cerveja bem gelada, menos pro Rosa que segue na pinga, Ana segue recitado, elíptica: “Quem quer saberá dizer / Pergunto mais, se sou sã / E ainda mais, se sou eu / Que uso o viés pra amar / E finjo fingir que finjo / Adorar o fingimento / Fingindo que sou fingida”.
Em meio às gargalhadas, menos do Borges, a turma ouve três batidas estridentes na grade de ferro. Do lado de lá, Leminski pede pra entrar. Chico tenta intervir. Saramago, impenetrável e sisudo, e ninguém havia percebido que ele estava sentado na diagonal de Borges, diz: “Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas”. Só Borges sorri e, deixando a sombra de lado, sentencia: “O final da história só pode ser narrado com metáforas, já que se passa no reino dos céus, onde não há tempo”.
— Ana, abre a porta, por favor? Faz frio em Caxias — suplica Caio.