Apático ou satírico? Ácido ou trágico? Infame, talvez. Porém sincero. Talvez não. Quem sabe? Tanto faz.
Tentei entender. Tentei subverter a ordem dos sentidos, inviabilizando o reflexo no espelho trincado. Impossível não reparar na fissura no espelho. Diariamente. Antes e depois de lavar o rosto. Antes e depois de escovar os dentes. Antes e depois de cortar a barba. Não lembro bem como foi. Só sei que está trincado. Só lembro do espelho trincado quando preciso.
Ácido é o dissabor da mesma comida, na mesma mesa, na mesma casa, na mesma caverna. Trágico? Nem dá tempo pra isso. Porque o farrapo perdeu a guerra antes mesmo de sair da caverna. Afável? Também não. O peso da memória, das noites mal dormidas, do certo alívio de não acordar. Nunca mais. Talvez isso. Das sinceridades de todos os dias, talvez a memória da fissura no espelho seja a melhor delas. Pelo menos é a que perdura.
Outro dia lembrei do dia em que... Já esqueci. Prometi que faria isso. Nem dói mais. Viu como não é trágico? Talvez uma bênção, ou livramento ou a piedosa mão do Senhor. Pelo menos era isso que o pastor pregava. Te falo que é bem mais fácil andar por aí seguindo suas as linhas tortas. Pelo menos era isso que a minha avó dizia, que Jesus escreve certo por linhas tortas. Só que daí ela ficou brava quando eu disse que Jesus não tinha deixado nada escrito. E esse negócio de "escrever certo por linhas tortas" é um slogan péssimo pra um cara gente fina como Jesus. Canalha é quem usa o que ele ensinava como gozo narcísico.
Pois é, eu te disse. Vem sempre a imagem da mesma imagem refletida no espelho com aquela maldita fissura. Óbvio que já pensei em trocar o espelho. Mas eu sempre esqueço. Não do mesmo jeito que prometi esquecer de tudo. Só esqueço. Nem ácido, nem sádico, nem satírico. Talvez só por apatia mesmo. Talvez seja só pra tentar imaginar que uma vez isso nem me incomodava. E na real, nem incomoda, por isso que eu não troco o espelho com aquela rachadura no canto direito da moldura. Sim, tem isso ainda. Além da fissura no espelho, a b* é que a moldura trincou bem na quina.
Eu tava tri afim de assistir a peça com texto do Caio F. e perdi porque tava com covid. Pela segunda vez. Nada trágico. Talvez satírico. Apesar de vacinado e sem comorbidades, fiquei travado numa cama fritando de febre. Na tevê o Maringá metia dois no Flamengo e eu tentando engolir o remédio que não cura, só alivia. Sei lá, talvez tenha sido só um sonho, mas o espírito em forma de gavião que o cacique me explicou que viu, aparecia de vez em quando na quina da minha cama. Quem sabe. No quinto dia da porrada da covid, acordei sem febre e nunca mais vi o gavião. Nem sonhei com ele. O espelho continua fissurado, inclusive a moldura, rachada bem na quina, no canto direito. De pé direito vi o Suárez errar mais um pênalti. Tanto faz. O dinheiro cai na conta igual. É sempre assim. É como o Caxias na série D. Tanto faz. Nem trágico, nem satírico. Destino? Talvez. Quem sabe. Acho que não. É tipo a covid. Um dia passa. Com ou sem gavião em campo. Talvez sim, talvez não.
— É falcão, Mugnol — diz o Mariani, talvez o último torcedor do Caxias.
Falcão é o símbolo da garra grená. Um dia vai. D de dia ou destino. Aí vem a série C de canelada. Depois a B de bicuda. E a A de "ah tá, nem sonhando". Satírico? Tanto faz. Quem sabe.
— Mugnol, não pode cornetear o próprio time — ensina Ciro, o colorado, do time que invade o campo pra dar tapa nos atletas do Caxias.
A corneta é o último resquício do finado romantismo do futebol. A melhor memória do futebol que eu tenho é sentado ao lado do meu pai na arquibancada (ele tinha uma cadeira Sócio Falcão). A gente levava uma revista velha pra não sujar as calças, pra minha mãe não reclamar. Em campo, por mais que eu gostasse de ver pernas de pau chutando aquele gomo branco, o melhor sempre acontecia no intervalo. Descíamos até o bar. Meu pai comprava um copão de refri pra mim e um cachorro quente.
— Pede sem molho, filho.
Sempre obedeci. É sincero. Meu amor pelo meu pai. E minha paixão pelo Caxias. E só torço pro Caxias. Mesmo sendo corneteiro, viu Ciro. É estranho pensar assim, mas essa obsessão por subir de série não faz bem pro grená. Quanto mais longe da A mais perto do real sentido de uma partida de futebol. Que não serve pra nada além de uma certa adrenalina, entre o trágico e cômico, entre o desespero e a agonia, antes e depois de um cachorro-quente e um copão de refri. Quanto maior o salário, maior a pressão por resultado, por destroçar recordes, pra vender mais camiseta, pra um bando de pernas de pau de escritório decidir o que fazer com o dinheiro que entra. Trágico? Quem sabe. Tanto faz.
O Ronaldinho Gaúcho, que é bonito a ponto de fissurar espelhos, que perdeu do glorioso grená no antigo estádio Olímpico, inclusive perdendo pênalti. Não é só o Luisito. Trágico? Satírico? Lírico? Tanto faz. Quem se importa. Não muda nada. O Ronaldinho Gaúcho, o mais perto de Garrincha que um ser humano conseguiu chegar, encheu o saco de chutar bola. Apatia? Ironia? Talvez. Quem sabe. Só importa aquela hora, comendo cachorro-quente, tomando um copão de refri, ao lado do meu pai na arquibancada. Na hora do gol eu nem conseguia gritar, porque tava com a boca cheia de pão, salsicha (sem molho) e muito ketchup. Mas meu pai vibrava, gritava e assobiava por nós dois. E é óbvio que ele xingava a torcida oponente. Satírico? Óbvio! A corneta, a gozação e tirar onda do adversário são os últimos resquícios do romantismo no futebol. Depois é claro, da memória afetiva de me sentar ao lado do meu pai, nas cadeiras de Sócio Falcão, usando uma revista pra não sujar as calças e, depois do jogo, tanto faz se ganhando ou perdendo, voltar pra casa de mãos dadas com o meu pai, descendo as escadarias do estádio Francisco Stedile, um dos caras que meu pai mais admirou na vida. Lírico, né? Pois é, a paixão pelo glorioso grená não é por causa de um jogo, é por uma vida ao lado do meu pai, o cara que mais admiro na vida.
E tanto faz. A fissura no espelho continua lá. Diariamente. Antes e depois de lavar o rosto. Antes e depois de escovar os dentes. Antes e depois de cortar a barba. Não lembro bem como foi. Só sei que está trincado. Tanto faz. Quem se importa? Eu não me importo, senão teria comprado outro espelho. Apático? Satírico? Tanto faz. Talvez e só talvez mesmo, escrever assim nesse fluxo contínuo seja só pra construir memórias. Nem todas afetivas e afáveis. Algumas satíricas e ácidas. E tanto faz. Daí lembrei de uma carta do Caio F. pra Hilda Hilst:
"Não sei mais o que te escrever, estou muito confuso, muito distraído. Pressinto muito próximo o fim de alguma coisa que não sei especificar qual seja. Mas não se preocupe muito comigo, não vale a pena. Acho que sou bastante forte para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente fraco para entrar. Não faço planos, não sei o que vai acontecer amanhã. É só, Hildinha. Um beijo enorme do seu, Caio Fernando Abreu".
Apático ou satírico? Ácido ou trágico? Infame, talvez. Porém sincero. Talvez não. Quem sabe? Tanto faz.
"P.S. - Depois de reler - não é tão grave assim. Fui muito dramático. Faça boas vibrações por mim. Por favor, compreenda tudo. E escreva logo".
E tudo isso só pra dizer que a fissura no espelho continua lá. E tá tudo bem.
P.S.: 21 de abril é também o dia de lembrar da poeta Hilda Hilst, que morreu dois anos antes do seu Stedile, que morreu dois anos antes do meu pai.