À mesa, quatro convivas distribuem cartas. Entre olhares e copos meio vazios, não demora muito pro blefe correr solto, numa troca bem canalha de envidos, trucos e retrucos. Dos jogos de cartas, talvez o que mais se aproxime da vida como ela é, desse cotidiano que teimamos jogar pra debaixo do tapete, é o truco. A arte do truco é dar sinais de que você tem as piores cartas da mão, ou as melhores, a depender da ocasião.
“A ocasião faz o ladrão”, diz uma das leis da vida loca. Daí, o sábio sem trono, depois do retruco, diz:
— Se pensar em roubar já é ladrão.
— Ser ou não ser... — divaga o jovem Hamlet, que não jogava truco, mas aprendeu como ninguém a blefar.
Às portas da velhice, a melhor estação pra se viver, quando o tempo readquire sua formosura, frescor e jovialidade, ando empenhado em construir um bunker de memórias. Será no alto de uma colina, onde o orvalho possa descansar até o meio-dia. Um lugar onde o vento sopra como um quarteto violinos, violoncelos e violas, e as folhas flanam como um par de bailarinas, com jetés (vai no google) pra cá e pra lá. Um lugar onde o blefe do truco é pra dar risada e não tapa na cara ou facada nas costas, como é a vida no lado de cá da colina.
Depois de Shakespeare, que esquadrinhou cada canto da nossa alma, que desvelou nossos desejos, impulsos e pulsões, entre a satisfação e a culpa, entre o beijo e a morte, entre versos impiedosos e de sublimação, que nos tornou ainda mais humanos do que sonhavam as vãs e piedosas alegorias de céu e inferno, em sua tacanha filosofia, a humanidade tem se empenhado em amontoar caveiras em uma velocidade impossível de se controlar.
Séculos depois de aprendermos a tecer, coser em tramas, ora em lã, linho e algodão, ora sustentáveis, como a fibra de bambu, ora sintéticos e ajustados como a lycra, anualmente, quando vem chegando o Outono, iniciam as campanhas do agasalho. Porque ainda (e desde antes de Shakespeare) há quem tenha fome, sede e frio. Não há empreendedorismo, CEOs, nem coaches suficientes nesse planeta pra alimentar e vestir os desvalidos mundo afora.
Outro dia, li que uma droga nova entrou de rodo em todas as querências. Ela transforma as pessoas em zumbis. Não é blefe de truco, não. Acredite. Vai no google. Vai por mim, há mais mortos-vivos por aqui do que sonha vossa vã filosofia. Mesmo sem essa droga.
— É ou não é, Hamlet?
Caetano, sem cerimônia nenhuma, responderia:
— Alguma coisa está fora da ordem.
— Tem muito caô por aí — diria, em retruco, Dona Canô, de algum lugar mais altivo do que a colina.