O som da cidade, da urbanidade, dos grandes centros é ruído. É comparável à pior orquestra desafinada, cacofônica e inaudível. É pavoroso. É como caminhar de pés descalços em cacos de vidro pontiagudos. É como topar o dedão do pé no pé da mesa, tirando um naco da unha, que sangra. É como esfolar o cotovelo depois de tropeçar na calçada disforme.
Antes que eu seja acusado de dramático e exagerado, aos fatos. Somatize os sons, como se pudesse empilhar um a um.
Ruído do trânsito de carros, motos, caminhões, ônibus, vez ou outra de sirenes de ambulâncias, camburões da Brigada Militar e frotas velozes do Corpo de Bombeiros rasgando a cidade por todas as vias, ruas e avenidas. Além disso, pipocando daqui e dali, o ruído das motosserras, máquinas de cortar grama, roçadeiras, furadeiras, lavadoras de louça e de roupa, secadores de cabelo, misturados aos sons que transitam através das janelas de lares e bares que botam pra tocar suas músicas favoritas, duelando pelo protagonismo em um volume à beira do ensurdecedor.
Pra amplificar o sentido desse relato barulhento, sugiro que você se permita perceber esse ruído todo, de olhos bem fechados.
Dentro de uma fábrica, uma dessas com dezenas e dezenas de máquinas cortando e dobrando aço, onde as máquinas de usinagem produzem o som do filme Metrópolis, lá de 1927, dirigido por Fritz Lang (vai num google pra ver), onde a apoteose é o ruído em vertigem das prensas de muitas toneladas, onde esmerilhar, serrar e martelar é só mais um soco nos tímpanos. E como resgatar o diálogo em meio aos muitos decibéis acima da capacidade de separar o joio do trigo?
Foi só quando entrei mata adentro, seguindo as pegadas de Cilon Estivalet pelo Bosque de Canela é que fiquei espantado com o peso do ruído. Porque conseguia ouvir meus passos amassando folhas secas, grinfas de araucárias gigantes e pedaços pequenos de galhos de árvores, que se rompiam debaixo da sola dos meus pés. Quanto mais dentro do bosque, mais distante dos ruídos desse cotidiano ensurdecedor.
Cilon é um senhor que parou de ver a vida pelo prisma dos ruídos que a vida provoca na gente. Cilon escolheu viver no bosque, perto do lugar de origem de seus ancestrais indígenas. Perto do lugar em que somos despertos para o sentido do silêncio. Sábio, sabe a hora certa de compartilhar as histórias que conhece, muitas delas, escritas na seiva das árvores desse oásis que ele e a esposa, Rosvita mantém, com bravura, amor e dedicação, a alguns minutos do centro de Canela.
Tivéssemos chegado minutos antes ao Bosque de Canela, teríamos visto Cilon em meio a uma turma da quarta série de uma escola que fica ali, bem pertinho. Não tem problema, como se pudesse restabelecer uma nova ordem temporal a partir do milagre que só a Literatura pode fazer, Cilon escreveu a cena em seu livro cartoneiro, Almanaque - Poesias e Um Conto:
“As crianças chegaram em bando e voo livre no Bosque de Canela. Pousaram silenciosamente na Eugenia uniflora carregada de pitanga. Vieram numa boa tarde, exibindo coloridas asas que aprenderam na escola. Grande era a alegria quando se dispersaram no céu e deixaram uma velha e sábia árvore”.
Em uma tarde Cilon ensinou-me um novo sentido. O sentido do silêncio. Sabendo ouvi-lo é mais audível do que os ruídos que teimam atravancar nosso caminho, como diria, de um outro jeito, Drummond. E nesse diálogo, cabe ainda a sentença de Quintana, que, tenho certeza, inspira Cilon: “Eles passarão, eu passarinho”.