Li ontem uma nota breve: “biógrafo de Fernando Pessoa encontra poema inédito do escritor português”. Diz a nota que o poema, escrito à mão, foi encontrado no verso de uma folha datilografada de Novela Curta, texto atribuído a Álvaro de Campos, um dos tantos heterônimos de Pessoa.
Esses são os versos do inédito poema: “A ave canta livre onde está presa / O servo dorme e o sonho lhe é surpresa / Liberta-te, mas nega a liberdade / Poder e não querer, eis a grandeza”.
Bonito, né? E também triste.
Pessoa e seus “eus poéticos” transitavam sempre em desassossego que, aliás, é nome de uma de suas obras, reunindo mais de 500 fragmentos escritos por duas décadas e publicados quase 50 anos depois de sua morte.
Em um dos trechos, que dizem ser “o livro da vida de Pessoa”, ele sentencia: “Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei”.
Um cara solitário, porém boêmio. Pelo menos é o que revela a sua poesia: “Dá-me mais vinho, porque a vida é nada”. Esse trecho é citado por Paulo Mendes Campos, uma das lendas da crônica brazuca, que também apreciava a boemia como estilo de vida.
Mesmo que por descaminhos metafóricos, Pessoa caminhava por uma transcendente e misteriosa trilha: “Tudo transcende tudo; Intimamente longe de si mesmo / E infinitamente, o universo / A si mesmo, existindo, se ilude”.
Caetano poetiza também sobre essa dita transcendência, porém, embebecida em reminiscências – e na literatura: “Os livros são objetos transcendentes / Mas podemos amá-los do amor táctil”.
Releio o primeiro verso do poema inédito de Pessoa, “A ave canta livre onde está presa” e relaciono com uma das tantas afirmações arrebatadoras de Paulo Mendes. No quesito “irônica transcendência” ele é o mestre: “O homem entra no bar para transcender-se – eis a miserável verdade”.
E como responder a essa genial observação da boemia como estilo de vida?
“Dá-me mais vinho, porque a vida é nada”, diria Pessoa.
“A arte existe porque a vida não basta”, retrucaria Ferreira Gullar.
Ao cabo, outro boêmio citado no caderninho de Paulo Mendes, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, cantaria:
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Bonito, né? E triste.
“Jê, a saideira, por favor”, peço, escorado no balcão do Zaraba.
“Bebo em legítima defesa”, diz Jê, sorrindo.
“Essa é a última, viu?”, avisa Luci.
Pois é, Pessoa, a boemia é a chave que abre os portais da transcendência. Logo mais tô aí.
Transcender é sempre um ato poético.