Cena 1
Ele tem mãos calejadas, de quem trabalha firme com o formão pra dar forma a mesas e cadeiras. As mãos são ásperas como lixa, que usa pra deslizar sobre os troncos de madeira e dali extrair o sustento da casa. O rigor do ofício, a necessidade de que cada entalhe seja cirúrgico, talvez venha daí o seu jeito ranzinza. De tão ranzinza, ele se tornara engraçado. O clown da marcenaria. Uma espécie de bobo da corte como em Rei Lear, de Shakespeare.
Narração em off
O que é o tempo se não um portal que nos conduz dessa pra outras memórias?
Cena 2
Ela não sorria. Chegou cedo ao trabalho. Dentro de uma bolsa grande, à tiracolo, encontrou as chaves pra abrir a loja que fica perto de onde os feirantes berram suas promoções. Depois de acender as luzes do estabelecimento, respirou fundo, encarou-se no espelho. Antes de começar efetivamente sua jornada ela precisava se maquiar. E mesmo que prefira menos base, rímel, batom e sombra, a dona da loja sempre lhe cobra que carregue na maquiagem.
Narração em off
Por que dói mais durante a queda vertiginosa e em câmera lenta do que na hora em que nos esborracharmos no piso do tempo finito?
Cena 3
Ele carrega no olhar uma dor que não cessa, porque a memória da filha estará sempre presente, dentro e fora desse tempo. Dia desses, enquanto esperava na fila do banco, compartilhou duas ideias que lhe pareceram dar sentido à vida. Primeiro, quer voltar a ser músico pra juntar uma grana e ajudar pessoas carentes. “Gente que se receber 10 reais fará uma grande diferença”. E quer escrever um livro. “Só que eu não sei escrever, sou apenas um anjo solitário”.
Narração em off
O tempo está sempre à espera de uma ocasião pra afundar o barco. E tem outra forma pra aprender a discernir o tempo das estações?
Cena 4
Ela parecia aprisionar uma tormenta que só cabe em um filme preto & branco, porque as cores não suportam tamanha opressão. No caixa do supermercado, diariamente, ela registra produtos que nunca poderá comprar. Não pelo menos na quantidade que muitos clientes compram. Sequer conseguia disfarçar o espanto de ver uma senhora pagar por dezenas de garrafas de água mineral francesa e vinhos italianos, além de um sem fim de petiscos, alguns que ela nem mesmo sabia existir. Assim que entregou o cupom fiscal à cliente, disse à sua gerente: “Preciso sair pra levar minha filha ao médico”.
Narração em off
O que somos além de personagens percorrendo tempo e espaço?
— Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio? — diverte-se O Bobo, em Rei Lear.