Numa manhã transfigurada, ainda sonolento, caminhei do quarto até a cozinha, passando pelo estreito corredor por entre livros. Pra minha surpresa, um homem de costas observava uma das pinturas na parede. Cheguei mais perto e vi que ele estava de olho em uma ilustração do poeta Ferreira Gullar, desenhada pelo Rafael Dambros, fixada na parede, ao lado de três obras da Tere Finger.
Quando esse senhor se virou pra mim, me encarou e pude enxergar seu olhar de reprovação mesmo por detrás dos óculos de aros grossos. Esguio e magro, avançou meio passo em minha direção e, apoiado na mesa que nos separava, ajustou os óculos e disse, com firmeza, sem levantar o tom de voz:
— Ah, então tens aqui nessa parede uma imagem do Gullar, mas não tens a minha?
Lembrei que havia vivido essa cena enquanto abria uma garrafa de vinho e me sentava justamente na mesma mesa do sonho da noite anterior. Assim que me servi do néctar de Baco (ou seria Dionísio?), e no caso, não era de nenhum dos dois, mas de uma cantina que fica longe demais das capitais, interrompi o ritual notívago, sentei-me e revi a cena, agora fora dela. Era Carlos Drummond de Andrade, o poeta, enciumado com o retrato do Gullar na parede. Pois, é. Freud, me explica, faz favor?!
Na hora, dei risada do acontecido. Depois, revendo a cena mais uma vez, lembrando do olhar de reprovação do poeta Drummond, resolvi tomar uma providência. Porque assim, não uso amuletos, não participo de cultos ou reuniões espirituais, nem cultivo relações com quem morreu. Não temo ser amaldiçoado por espíritos revanchistas. Contudo, porém, todavia, por se tratar do Drummond, o escritor cujas obras estão em maior volume lá na biblioteca de casa, por reverência e respeito, resolvi desfazer o mal entendido.
O Rafa deve ter estranhado receber uma mensagem madrugada adentro, solicitando a ilustração do Drummond, no mesmo tamanho e traço, com a mesma técnica do uso de caneta esferográfica. Tanto estranhou que no dia seguinte, ele me pediu se poderia entregar a ilustra em agosto, lá pela metade do mês. “Claro que pode, Rafa”, respondi, tentando aliviar a pressão. Afinal, já chega o Drummond p* da vida comigo. “Faz o desenho com calma, Rafa”. Já reservei o lugar e avisei ao Drummond onde o retrato será fixado. Não ficará ao lado do Gullar. Achei prudente, pra não causar discussões.
Entre um poeta e outro vou manter as três obras da Tere Finger. À direita do Gullar, uma cristaleira o separa de outra lenda, o cineasta Federico Fellini, que é o guardião dos vinhos da casa. E à esquerda do Drummond, está ali, impávida, uma tela gigante, pintada pelo Lindonês Silveira (o eterno Maneka), que agora anda lá pras bandas da Vacaria, mais especificamente em Monte Alegre dos Campos. Ele está erguendo um ateliê entre um mar de araucárias, onde o 3G ainda não alcança. Maneka, te cuida, porque tua obra vai fazer sombra não apenas pra um, mas agora, dois dos mais importantes poetas brazucas. E são porreta. Saravá!