Nas palestras motivacionais, dentro e fora do ambiente corporativo, a síntese sempre gira em torno da máxima “somos fruto das nossas escolhas”. Parafraseada em múltiplos loopings, com ou sem o uso das inteligências, artificiais ou naturais, que lá no fundo vão sempre redundar no ensino do Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Prefiro a contramão.
Explico. Nasci em 1976, sob o signo de Libra, com ascendente em Virgem, e sei lá o que isso significa. O Nivaldo e o Caio F. bem sabem, porque viajam nessas órbitas astrais. Enfim. Eu, míope e destro, nascido no Hospital Pompéia, desde lá careca, encontrei a salvação nas aulas de redação e nos livros que li. Sou, por isso, filho de Claudio e Maria Helena por conta da biologia, sob a unção dos livros que li, risquei, sublinhei, dormi junto, troquei, comprei, recomprei, doei e dos que ainda nem li e nem vi.
Curiosamente, em 1976, Ruth Rocha lançava Marcelo, Marmelo, Martelo (e agora virou série de TV). Curiosamente, ganhei esse livro dos meus pais antes de aprender a ler. Esse é o livro da minha vida e Ruth, a escritora que me lançou numa queda suave em vertigem infinita, entre a prosa e o verso, atravessando enredos trágicos, melodramáticos, alguns irônicos, outros líricos, entre personagens que sobrevivem da imaginação de quem os inventou ou romanceou.
Não sou o Marcelo da Ruth. O Marcelo da Ruth é um dos personagens mais cativantes da história da literatura. E sem essa de falar “literatura infantil”, como se a dona Ruth escrevesse só pra gurizada. Não tenho mais o livro que meus pais me deram de presente antes de aprender a ler. O Marcelo da Ruth, daquela primeira edição, se perdeu nos descaminhos da vida, nas viagens por mares nunca dantes navegados. A publicação que tenho em casa é mais recente, foi a minha mãe quem recomprou. De vez em quando, pego pra ler e ainda me divirto.
— Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?
— Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.
— E por que é que não escolheram martelo?
— Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta...
— Por que é que não escolheram marmelo?
— Porque marmelo é nome de fruta, menino!
— E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?
Esses porquês me acompanham dormindo e acordado. Também essa mania de inventar um novo jeito de enxergar as coisas ou reinventar o sentido delas. Esse andar na contramão, inspirado pelo Marcelo da dona Ruth, aliás, transita em sintonia com a sentença do meu poeta favorito, o Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”.
Como diria o Marcelo da Ruth, imaginar é subverter fronteiras, é criar memórias para além dessa vida pequena que a gente leva de nascer, crescer e morrer.