Era pra ter sido só um almoço, que acabou se estendendo e quando vimos já era noite na velha casa da chácara. Tínhamos vinte e poucos anos, nenhum sinal de calvície. É clichê, mas num piscar de olhos lá se foram mais de 25 anos desde o dia em que fizemos o retrato. Naquela época, éramos oito nessa foto. Hoje, estamos em sete. Nosso guitarrista morreu.
Falando em música, a trilha sonora daqueles dias juvenis, tinha um certo acento pra rebeldia. Rage Against, Ramones, Red Hot, Nirvana, Jesus and Mary Chain, Sepultura, Primus e por aí vai. De vez em quando, nosso violonista sacava da viola e dedilhava umas suavidades do quilate de Nei Lisboa. E bebíamos como se não houvesse amanhã. De quando em vez rolava até um carteado em truco entre conversas filosóficas sobre música, literatura, cinema e até política. Ah, claro, e sinuca na sala onde fizemos o retrato.
Morávamos todos em Caxias. A desculpa esfarrapada que nos damos e aceitamos é que, agora, uma parte mora longe. Nunca mais vamos repetir aquela foto, como disse antes, um de nós já morreu. Mas não é só por isso. Se estivéssemos na mesma sala, com a mesma pose, seria só uma cena fake, forçada, digna dos piores filmes clichê. O retrato original é um deboche às fotos de bandas fabricadas, em que cada músico incorpora um personagem.
Um deles, por exemplo, usa chapéu estilo cowboy, inclusive com o cigarro no canto da boca, veste jeans e tênis de jogar basquete. Ele é o nosso escritor. Por sua vez, ele está entre dois caras que seguram espingardas velhas e enferrujadas. O de sobrancelhas bem marcadas usa um boné virado pra trás, reforçando o tipo de mau, quando, na verdade, é um doce de pessoa. Virou até empresário, tu vês. Esse outro que segura uma espingarda velha em desuso é o nosso amigo matemático e contador.
Da esquerda pra direita, começa com nosso guitar hero, um tipo engraçado do naipe do nosso engenheiro de minas e grená até debaixo d’água, bem no centro do retrato. Um deles, um ás no truco, o outro, nos arpejos. Distintos no gosto musical, de um lado Ramones, de outro Deep Purple, afinavam na ironia de uma piada para cada deslize nosso. Não sei o porquê, muito menos de onde tiramos dois capacetes amarelos, esses que se usam em construção. Um pra mim, outro pro nosso multiartista, que já encenou até peça do Ariano Suassuna. É dele o único sorriso autêntico dentre nós, talvez porque tivesse sacado o quão ridículo estávamos.
Mais ao fundo, de blusão preto em listras, está o nosso médico sem fronteiras. Naquela época, ele achava até o PSTU um partido de centro. Teria sido nosso guerrilheiro do Araguaia, nosso Marighella, se tivesse vinte e poucos anos em 1964. Confesso que não lembro quem clicou nossa foto. Eu pensei que tinha sido nosso amigo dos halteres, o cara com pinta de modelo. Agora ele mora em Sampa, casou e dia desses compartilhou uma fotografia do filho, que, se depender do pai, será colorado e grená. Mas não foi ele. Segue o mistério.
Saudade? Muita. Não só daquele tempo em que tínhamos a impressão de que nada nos separaria, de que aquela amizade seria imortal diante de tudo e de todos. Saudade do reencontro, que ocorreu assim, despretensioso, e que marcou de um jeito tão intenso aqueles dias. E as nossas vidas.