Pois é, 133 anos de Caxias do Sul. Certa feita, escrevi uma reportagem no finado jornal O Caxiense. O título era Cidade dos sonhos, foi republicada no livro Neblina na tarde fria, e aproveitando o aniversário de Caxias, reproduzo a seguir o trecho inicial da reportagem em tom de crônica:
A cidade muda e parece sempre a mesma. Há arranha-céus onde antes a mata virgem esparramava-se. Tailandeses põem sua cultura à mesa onde antes só havia massa, galeto e polenta. A jornada de trabalho se encerrava com o sol se pondo no horizonte. Hoje, o trabalho nunca termina, nem mesmo quando a noite invade o dia. Pode-se ouvir um trompetista revelar a tristeza de uma noite vazia em jazz com a mesma intensidade que o nono canta suas dores e saudades da Itália querida num trôpego dialeto. Caxias do Sul tem muitas cidades dentro dela. Mas, no final das contas, mesmo jovem, é quase sempre a velha Caxias.
É como aquela mulher que perdeu muito cedo o marido e guarda um pequeno baú de boas lembranças embaixo da cama. Pode até renascer o amor em outro alguém. Pode até mudar de casa. Pode reinventar seus sonhos e desejos. Mas jogar fora o baú e suas memórias seria o mesmo que desprezar a história do maior amor da sua vida. Desprezo que ninguém nem cidade alguma merece.
Porque desprezar a cidade é escarrar nas vidas que constroem a história de Caxias. Misteriosa terra de oportunidades e ruas sem saída. Viver em Caxias é aprender a escapar de labirintos. Onde resistir é mais do que uma sina. É preciso ser forte para não ser devorado. Não mais pelos animais selvagens daquela terra de ninguém. Mas devorado pelo sonho de outro alguém que, por mais bravura, conquista o que o primeiro da fila deixou escapar.
Numa dessas poucas tardes de sol outonais, uma menina vendia balas de goma na Avenida Júlio de Castilhos. “Um real, tio. Quer?”, ofereceu, um tanto ansiosa. “É pra que esse dinheiro?”, perguntei. A menina, que não é tão menina assim, deve ter 17, 18 anos, desviou o olhar. Parecia envergonhada. Refiz a pergunta. Ela inspirou e, me olhando, disse: “É por um sonho, tio”. “Um sonho? Que sonho?”, insisti, surpreso. “Ah, isso é entre eu e Deus”, respondeu.
Caxias é uma cidade onde os sonhos valem de R$ 1 a R$ 1 bilhão. Mas por R$ 5 pode-se almoçar ou comprar droga. Um guarda-chuva novo vale R$ 50. Consertar o velho não sai por menos de R$ 30, dependendo do estrago. Juçara poderia ver seu sonho realizado antes se vendesse ou consertasse guarda-chuvas. Mas para vender esse tipo de produto iam pedir a ela firma registrada, alvará, nota fiscal etc. E talvez fosse tarde demais esperar pela burocracia. Talvez seu sonho saísse voando por aí. Ou tombasse diante do crime por uma bala de revólver. Neste ano, mais de 40 pessoas já foram assassinadas em Caxias. Melhor vender balas de goma.
“Só um sonho pra manter o cara vivo”, revela JL, 25 anos. JL não é a abreviação de nome de bandido. É o nome de guerra de um sobrevivente. Um cara que encontrou na música um fio de esperança.
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Quer terminar de ler a reportagem? Como disse láááá em cima, na abertura da crônica, a reportagem está publicada no livro Neblina na tarde fria, publicado pela Liddo Editora. O livro pode ser adquirido na Livraria e Café Do Arco da Velha ou no Zarabatana Café, ambos em Caxias do Sul. Ou pela editora, pelo Instagram @liddoeditoracaxias.