Por Diego Petrarca
Professor e poeta
Ana Cristina Cesar (1952-1983) adorava escrever cartas. Tanto que em 1979 ela editou artesanalmente um livro de bolso chamado Correspondência Completa, composto de uma única carta. Agora, aproveitando a celebração dos 70 anos da poeta, ensaísta e tradutora já celebrada pela Festa Literária de Paraty (Flip) e cada que vez mais arrebata as novas gerações de escritores, sai uma compilação de cartas chamada Amor Mais que Maiúsculo – Cartas a Luiz Augusto, que revela um lirismo exacerbado norteado por um namoro entre seus 17 e 19 anos. O livro reúne 82 cartas escritas entre os anos de 1969 a 1971. O conjunto de originais manuscritos foi transcrito pela equipe de Literatura do Instituto Moreira Salles (IMS).
O destinatário era Luiz Augusto Ramalho, que em 1969 havia partido para para Aachen, na Alemanha, como exilado político. Nesse período, o mais severo da ditadura militar, a futura tradutora de Sylvia Plath estava estudando em Londres, na Inglaterra, e o casal se correspondia para manter de alguma forma aquele vínculo. A separação do namorado, que acabou ferido na perna pelos agentes da ditadura, resultou em um estado poético cultivado pelo casal durante três anos.
As cartas são permeadas de referências: Beatles, Fernando Pessoa, Caetano Veloso, Chico Buarque, Noel Rosa, Joan Baez, Elizeth Cardoso, livros de Clarice Lispector, George Orwell, Albert Camus, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade. A intertextualidade musical e literária costura aquelas declarações como se ajudasse a compor a dialética lírica inspirada pelo namoro a distância. Praticamente um mostruário das futuras obsessões artísticas da autora de A Teus Pés, que este ano, inclusive, completa 40 anos de lançamento.
As citações literárias presentes nas cartas se misturam com as da canção popular. Ana Cristina Cesar pertenceu a uma geração que transitou livremente entre poetas de livro e letristas de música, assim como diretores de cinema, elementos que formaram o mosaico contracultural da chamada Geração Mimeógrafo, da qual a autora foi um dos destaques e, a sua maneira, recuperava as ideias da primeira geração dos modernistas de 1922 (outra efeméride), que mais tarde a levou a compor o ensaio A Literatura Marginal e o Comportamento Desviante.
A prosa poética daquela correspondência soa espontânea, por vezes sem pontuação nem pausa, de propósito, e assim expor o tom apropriado para aquela urgência em declarar-se ao interlocutor e muso, que já revelava a destreza literária de uma poeta promissora no fim da adolescência: “Me levem nevoeiros britânicos. Interjeições. Quero chover com você Luiz. Olha vamos pular essas cataratas. Eu não posso entender essa ausência de pétalas Luiz Luiz nem essa parábola mais que imensa”.
As cartas trazem comentários sobre discos, filmes, livros, um registro do panorama cultural daquele período (alusões a colunistas do recém criado O Pasquim, por exemplo) assim como ecos da repressão política e a saudade do Brasil que demorava para chegar. Todos são pano de fundo para as palavras de uma Ana C. (como o amigo Caio Fernando Abreu a chamava) destilando amor em papéis manuscritos guardados por mais de 50 anos. O volume de cartas também deixa revelar o período de formação intelectual da escritora e seu cotidiano em Londres. Os registros desses originais (envelopes, postais, desenhos, recortes, fotografias) estão fartamente reproduzidos na edição do livro.
Em Amor Mais que Maiúsculo, Ana Cristina Cesar nos mostra que cartas de amor podem não ser ridículas, pois, se existem demasiadas doses de sentimentalismo típico dos alumbramentos juvenis, há também doses generosas de engenhosidade literária: “Você é uma dimensão que me esculpe”.
Mediante os impasses do seu futuro, escrever e amar são elementos indissociáveis na personalidade de uma adolescente ancorando nas palavras a sua própria existência: “É agora que eu preciso te escrever. Com o pulso rápido, sem pautas nem parágrafos. (...) estou me sentindo neutra e vaga, voga, viga, verga, só nas aliterações súbitas e cheias de cruzamentos esteja desistindo”.
Se parte da gênese poética da escritora carrega a dicção de carta, o livro é um exemplo de que seu impulso criativo é motivado por este gênero. Também nos ensina com o sangue de uma poeta que não basta amar, mas, sobretudo, saber dizer, sem constrangimento (e em caixa alta ): “Quem me proibia de botar uma vírgula entre sujeito e predicado? (...) Sem vírgulas: eu te amo. Não posso pensar que eu te amo, não posso mastigar que eu te amo, não posso refletir em cima do eu te amo”.