* Crônica publicada originalmente em GZH em 23 de novembro de 2022. Texto integrante da coletânea de crônicas Histórias de Copa, publicada durante a Copa do Catar.
Eu vi Pelé jogar na Copa. A essa altura, porque o tempo passa, são poucos os que viram. Pelé se despediu da Seleção em 1972, no Maracanã, em um jogo contra a Iugoslávia, um país que não existe mais, e se dividiu em seis, obra e graça da geopolítica internacional. Depois, Pelé fez sua despedida do futebol profissional no Brasil com a camisa do único clube que vestira até então, o Santos, em jogo contra a Ponte Preta em uma noite comum de meio de semana na Vila Belmiro. Passado um tempo, aceitou convite para jogar no Cosmos, dos Estados Unidos, para ajudar a popularizar o esporte entre os norte-americanos. E aí sim, disse adeus aos campos.
E creiam, Pelé também jogava mal. Havia jogos em que tinha atuação comum, como a dos comuns dos mortais. Ou passava a maior parte do tempo tendo uma atuação opaca. Porque Pelé era uma pessoa como as outras. Então, você pensava: este é o Rei? Não foi o caso na Copa do México, a Copa em que vi Pelé jogar. Então se dava aquilo que o caracterizava como Rei, e que na Copa do México, em 1970, aconteceu com frequência: a genialidade, o inesperado, o surpreendente, lances que quase ninguém havia protagonizado até então, e Pelé tirava da cartola, com velocidade de raciocínio, força e destreza de movimentos. O mais refinado balé dentro das quatro linhas – não essas quatro linhas tão faladas recentemente, mas as quatro linhas originais de um campo de futebol. E aí Pelé era Pelé.
Naqueles seis jogos da Copa do México, como todo o time de Zagallo, a gente lembra de Pelé, porque ele fulgurava, entre momentos em que era comum e corria pelo campo. Mas, daqui a pouco, ele era Pelé. No meu caso, lembro vivamente de Pelé por causa de cinco genialidades, cinco lances inesquecíveis, e ver na hora, ao vivo, não é como ver depois, no YouTube: teve a magia da revelação, do momento.
1. O gol que Pelé nunca fez – e outros até já fizeram. Mas aquilo foi surpreendente. No jogo contra a Tchecoeslováquia, na estreia, Pelé tentou surpreender o goleiro tcheco Viktor, que ele vira adiantado, desde antes do meio campo. A bola passou a um triz da trave, com o mundo inteiro dizendo "oh", porque ninguém esperava aquilo, e o surpreendente era a magia de Pelé. Logo a seguir, vinha a fina execução dos movimentos.
2. A cabeçada contra a Inglaterra, a cabeçada mais mortal de que se tem notícia, de cima para baixo, mas que não feriu Gordon Banks, o goleiro inglês, de morte. Não houve gol, porque Banks era Banks, e fez a defesa mais espetacular de todos os tempos.
3. O lance mais genial de todos, o drible no goleiro Mazurkiewicz, na semifinal contra o Uruguai. O jogo, que havia sido dificílimo, já estava ganho e, nos últimos minutos, Pelé poderia fazer o normal, pegar a bola que tinha livre à sua frente, encarar o goleiro e investir rumo ao gol pelo caminho mais curto. Mas deixou a bola passar por um lado e saiu pelo outro, pegou a bola do outro lado, deixou Mazurkiewicz para trás e, com o gol já sem goleiro, chutou... para fora! Foi o "não gol" mais famoso da história do futebol.
4 e 5. O quarto e o quinto lances são de mesma matriz, de mesmo feitio, lances quase idênticos, aparentemente banais, que resultaram em gols. No jogo contra a Inglaterra, que estava encardido e foi o placar mais magro do Brasil na Copa, Tostão fez jogada brilhante e passou para Pelé. O gênio parou a bola, esperou um instante, descobriu Jairzinho livre e passou a bola a ele no lugar certo. Um pequeno "tapa" de Pelé para Jair, e gol do Brasil, o único gol do jogo. O outro lance teve uma plasticidade e um significado bem maiores. Foi o gol de Carlos Alberto, o quarto do Brasil na final contra a Itália, aos 42 do segundo tempo. O gol definitivo. Pelé, como havia feito contra a Inglaterra, deu outro "tapa" suave na bola, que saiu rolando obediente sobre o tapete de grama, sem solavancos, desta vez para Carlos Alberto, um passe um pouco mais longo, e o lateral desferiu um chute mais vistoso, com a bola estufando as redes de Albertosi, em uma estética inigualável: 4 a 1 e o tri. Nos dois lances, passes que seriam banais, quase displicentes, que Pelé transformou em únicos, e marca registrada.
Eu vi Pelé jogar e pude reter na retina esses lances inigualáveis. Fui um privilegiado. Pelé era uma pessoa comum e, como tal, um jogador que às vezes até não jogava bem, em outras, um jogador comum, mas que tinha acesso livre ao inesperado, ao surpreendente, com a fina maestria da execução. E aí era genial e único. Meninos e meninas, eu vi! Foi pela tevê, mas ainda pude ver Pelé jogar uma Copa!
Uma bênção. Só resta agradecer.