"Quando chegar meu inverno que me vem branqueando o cerro...” Esta imagem contida na letra de Veterano, um clássico da música regional, me é pessoalmente arrebatadora quando começam a se infiltrar as primeiras manifestações do inverno. A meteorologia estava a indicar que esta quarta-feira amanheceria com manifestações contundentes do inverno. Na verdade, o primeiro frio do ano. Deve ser isso mesmo. A letra inspirada é dos compositores Antônio e Everton Ferreira, imortalizada na voz de Leopoldo Rassier.
“Branqueando o cerro” remete ao Pampa, que se esparrama pela Argentina e Uruguai, especialmente, mas principia nas cercanias de São Gabriel, Rosário e Alegrete. O Pampa é uma vastidão que encharca a alma. E o cerro é típico do Pampa, uma leve e isolada ondulação do relevo, que se impõe à vista de longe. O resto é vastidão, um açude, um espinilho, uma tapera, um cavalo a menear a cola.
“Branqueando o cerro” remete à geada, também. O cerro branco é um espetáculo disponível a quem tem coragem, especialmente ao amanhecer daqueles dias rigorosamente frios. A geada castiga a agricultura, mas produz um cenário encharcado de pura cultura regional. Transposto para a Serra, o frio tem sua identidade própria, com as diferenciações geográficas e culturais, a neblina cheia de metáfora, a eventualidade rara da neve.
O frio é belo. O inverno é belo, mas não só. O inverno é rigoroso, a clamar por solidariedade. Mas tem mais significado. A letra de Veterano começa assim: “Está findando meu tempo, a tarde encerra mais cedo...” Admiro essa relação das estações do ano com a existência. O inverno, na poesia, é a última das estações, nem por isso mais interditada aos sonhos e ao sentir-se bem. Cartola, em O Inverno do meu tempo, começa com “Folhas a voar. O inverno do meu tempo começa a brotar.” Ah, as estações da existência! Antônio Cícero, com Adriana Calcagnotto, nos lembra que “o inverno do Leblon é quase glacial”. Logo à frente, acrescenta “que o destino sempre me quis só”, adicionando outra faceta ao conceito do inverno, a introspecção, o recolhimento, a solidão. Por esse ângulo, o inverno é possível no Leblon ou no Saara. Então vem a leitura gaúcha do Nenhum de Nós: “O céu está cinza e eu me sinto bem. / (...) Eu posso ver pela janela o inverno lá fora.” Nos é familiar o inverno visto pela janela embaçada e respingada.
Diz a meteorologia que este inverno será relativamente leve, como um cerro. Tomara. Mas não importa. É o inverno, e ele nos diz respeito. Parece que chegou hoje, cheio de impactos, mas também repleto de muitos significados.