Todo Carnaval, quando começo a assistir na TV alguma matéria sobre a Bahia e o Pelourinho, me vem à cabeça uma música belíssima chamada de The Obvious Child. Acredito que tenha sido entre 1988 e 1989 que um dos maiores compositores da música internacional, Paul Simon, veio até Salvador gravar com o grupo de percussão Olodum essa verdadeira obra-de-arte.
A letra da música fala com sabedoria sobre amadurecimento, e essa canção também originou um belíssimo vídeo filmado lá mesmo no Pelourinho, onde em 1979 foi fundado o bloco afrocarnavalesco. Não tem como não se arrepiar escutando os tambores do Olodum que ecoam tradições africanas milenares e atemporais e trazem uma potência imensurável a essa música, que foi um grande sucesso worldbeat no começo dos anos 1990.
Corta para 2023 e para a mesma Salvador, e para a suposta grande estrela da música baiana da atualidade, Ivete Sangalo. Para meu asco absoluto, ouvi durante o telejornal matinal na última sexta-feira, primeiro dia do feriadão de Carnaval, Ivete cantando a seguinte “pérola” em ritmo de axé: “Papá parará / Papá parará / Tem gente que senta pra beber /Aqui nós bebe pra sentar”. Não sei o que me deu mais nojo: o irritante uso desses “Papá parará” que mais parecem sons de tempos pré-históricos quando os primatas eram incapazes de elaborar palavras, o grotesco erro de concordância verbal com esse “nós bebe” ou a vulgaridade inquestionável da figura de linguagem do verbo “sentar” em alusão ao ato sexual.
Tudo é um horror, uma decadência, uma indignidade, uma desonra à inegável qualidade da tradição musical e artística que sempre se produziu no estado da Bahia, reverenciada por grandes artistas internacionais como o compositor Paul Simon citado na abertura deste artigo. O que se fez de tão errado para a música brasileira ter aceitado tão passivamente este gradual e constante nivelamento por baixo?
O que aconteceu com Ivete Sangalo me parece o sintoma de quem optou pelo “jeitinho”, pelo dinheiro fácil ao absorver e mimetizar as características do que hoje é popular (o funk carioca e o sertanejo universitário), deixando de lado suas raízes no axé e na musicalidade baiana. Na verdade, em resumo, essa coisa que a Ivete está apresentando como “hit do Carnaval” pegou o pior que existe no funk e só colocou dentro de uma embalagem de trio elétrico com um ritmo insosso que mal lembra os sons vibrantes – e reais – do Olodum, do Timbalada, de Luis Caldas, de Chiclete com Banana e outros grandes nomes do Carnaval da Bahia.
Ivete Sangalo agora canta um troço que é um espelho das letras das “músicas” de funkeiros e duplas sertanejas que fazem apologia à promiscuidade, ao abuso de álcool e ao hedonismo irresponsável. A meu ver, perdeu sua dignidade como artista. Deu as costas ao seu talento e ao belíssimo patrimônio musical e cultural de sua terra para servir a outros senhores. Uma lástima.