E quase 23 anos depois Caxias e Figueirense voltam a se encontrar. O jogo deste fim de semana evoca um dos episódios mais marcantes da história do futebol caxiense, que acompanhei em detalhes, e nos mostra também como o tempo gira inexoravelmente, renovando-se no eterno ciclo da vida.
O jogo daquele sábado, 22 de dezembro de 2001, era o epílogo de uma campanha memorável feita pelo Caxias no Brasileirão daquele ano. A base que restara do grande time campeão estadual de 2000 havia sido acrescida de outras boas peças, como Cléber, Sadi e Luís Paulo, além do retorno de figuras emblemáticas como Gil Baiano e Luciano.
O resultado foi um time forte e competitivo, que desde o início despontou como candidato a subir para a primeira divisão. O problema foi a irregularidade do Caxias no momento decisivo. Depois de empatar os três jogos do primeiro turno do quadrangular final, a equipe foi a Florianópolis enfrentar o Avaí. Após ter três jogadores expulsos no primeiro tempo, um suposto cai-cai acabou a partida no início da segunda etapa.
Na sequência houve a demissão do técnico Joel Cornelli e a contratação de Ernesto Guedes. Mesmo com as confusões, a heroica vitória contra o Paysandu, por 4 a 3, na penúltima rodada, deixou o Caxias vivo para o confronto final, contra o Figueirense, em Florianópolis. Um simples empate dava à equipe grená o acesso à Série A de 2002.
Cheguei ao local da decisão um dia antes, na sexta-feira, e já pude perceber um ambiente muito ruim. Como era de se esperar, o cai-cai havia repercutido muito mal, e havia um clima de guerra do estado de Santa Catarina contra o Caxias. Prevendo isso, o clube decidiu não se concentrar em Florianópolis, e não apareceu no hotel reservado, surpreendendo inclusive a imprensa caxiense.
As informações eram desencontradas, mas havia uma pista de que a delegação estava em Bombinhas. Na madrugada chegamos no suposto esconderijo, e confirmamos que o Caxias estava lá. Depois apareceram alguns dirigentes, que colocaram a condição de que poderíamos ficar, desde que não disséssemos onde estávamos. Aí os boletins citavam, de forma bizarra, que falávamos “de algum ponto de Santa Catarina”.
E ainda tinha o jogo. Retornamos a Florianópolis no fim da manhã do sábado e fomos para o Estádio Orlando Scarpelli. A nossa chegada deu a dimensão de que o Caxias não estava errado em se precaver. O carro, identificado com adesivos da rádio, foi alvo de muito xingamento, pedras, copos de cerveja e chutes. Isso que era cedo, e ainda não havia muitos torcedores do Figueirense no local. O clima também foi tenso na chegada dos ônibus com torcedores do Caxias. Sobrou pedrada e faltou ação da PM de Santa Catarina, que não estava muito preocupada com gaúchos naquela tarde...
Apesar da tensão, era dentro de campo que as coisas iam se resolver. O Figueirense tinha um bom time, mas não era melhor do que o Caxias, que tinha plenas condições de segurar o empate e sair do Scarpelli com o acesso. E o primeiro tempo do jogo deu a ideia de que isso ia acontecer. Apesar de certa pressão da equipe catarinense, o Caxias se defendeu muito bem e levou perigo nos contra-ataques. Inclusive, a melhor chance da primeira etapa foi grená, com o atacante Fábio Araújo. O experiente árbitro paulista Alfredo dos Santos Loebeling fazia uma arbitragem firme e tranquila, tanto que expulsou um jogador de cada lado já nos primeiros 45 minutos. Final da primeira etapa: 0 x 0. Era só o Caxias manter o ritmo no segundo tempo.
Mas o segundo tempo foi muito diferente. Primeiro, pelo clima, já que o calor de Florianópolis se transformou em chuva forte. Já o treinador do time catarinense, Vágner Benazzi, alterou a equipe, que foi para cima do Caxias com muito mais energia. Para piorar a situação, o técnico grená, Ernesto Guedes, começou a fazer bobagens. Aos dez minutos, após receber atendimento médico fora de campo, o atacante Fábio Araújo, que jogava muito bem naquela tarde, foi surpreendido ao tentar voltar ao jogo, pois já havia sido substituído, de forma incompreensível, pelo lateral Israel, que entrou em campo totalmente perdido.
O castigo veio logo depois, aos 16 minutos. Em uma bola levantada na área, o atacante Abimael, um dos que havia sido colocado em campo por Benazzi, abriu o placar para o Figueirense. Daí em diante o Scarpelli lotado transformou-se em um caldeirão, e o Caxias, pressionado em campo e desestruturado taticamente pelo próprio treinador, lutaria pelo empate, embora sem conseguir produzir muita coisa.
Aos 46 do segundo tempo tudo se encaminhava para a vitória do Figueirense. O Caxias ainda esperneava, mas dificilmente teria forças para conseguir empatar nos dois minutos que restavam. Em um lance sem importância, o árbitro esticou o braço para assinalar um lateral para o os catarinenses. Alguns torcedores pensaram que ele tivesse assinalado o fim do jogo, e aquilo foi o estopim para que dezenas de pessoas, muitas dos quais que já haviam pulado o alambrado, invadissem o campo para comemorar o acesso.
A partir daí foi um salve-se quem puder. Os atletas do Figueirense correram para o vestiário, e os do Caxias tentavam permanecer em campo para retomar o jogo, pois tinham a convicção de que o juiz não havia apitado o final. Muitos chegaram a ser agredidos pelos torcedores catarinenses. A minha preocupação naquele momento era registrar a situação dos caxienses, além de tentar ouvir o árbitro sobre a invasão, embora estivesse difícil localizá-lo no meio do tumulto.
Eis que, de repente, Alfredo dos Santos Loebeling surge na minha frente, escoltado por alguns policiais. Consegui perguntar qual a situação do momento e ele falou, claramente, que não havia encerrado o jogo, e que a invasão acontecera quando ainda faltavam dois minutos para o final. A intenção era, inclusive, retomar a partida assim que a confusão terminasse. Se isso não fosse possível, ele ia relatar na súmula que a invasão tinha causado o encerramento. Não houve mais condições para jogar, já que as redes das goleiras, bandeiras de escanteio, bolas e uniformes haviam sido levados pelos torcedores do Figueira.
Embora frustrante, a forma como o jogo terminou abriu uma possibilidade para o Caxias. As normas disciplinares da CBF previam que, se uma torcida invadisse o campo, o clube responsável tinha que ser punido com a anulação do resultado do jogo. Com isso, excluídos o 1 a 0 e a vitória do Figueirense, as duas equipes ficariam empatadas com seis pontos. O Caxias, no entanto, ficaria com a vaga, por ter saldo zero, contra saldo negativo dos adversários. Dirigentes e jogadores chegaram a comemorar no vestiário, e era só esperar a publicação da súmula para dar entrada em o processo de perda de pontos da equipe de Florianópolis.
No entanto, as coisas não seguiram essa sequência lógica. Dias depois, ao chegar à CBF, a súmula feita pelo árbitro Alfredo dos Santos Loebeling era muito diferente. No documento, ele dizia que havia encerrado o jogo aos 46 do segundo tempo, e que após o apito havia acontecido a festiva invasão dos torcedores catarinenses. Ou seja, exatamente o contrário do que havia sido visto em campo e do que ele mesmo declarara. A entrevista que fiz com o juiz virou uma das provas da fraude.
O Caxias se armou juridicamente e preparou um recurso para tentar desmascarar Loebeling, mas isso nem foi preciso. Já no início de janeiro de 2002 o colunista Juca Kfouri denunciou na Folha de S. Paulo que o juiz havia sido coagido pelo presidente da Comissão Nacional de Arbitragem, Armando Marques, a escrever a súmula de forma que não houvesse como contestar o acesso do Figueirense. Os interesses por trás disso? Até hoje não ficaram claros.
O caso ganhou repercussão nacional, e o Caxias ganhou fôlego para contestar o resultado nos tribunais.
Dias depois, o próprio Loebeling veio a público e confirmou a fraude. A carreira dele terminou ali, embora nada tenha acontecido a Armando Marques. O caso ganhou repercussão nacional, e o Caxias ganhou fôlego para contestar o resultado nos tribunais.
O primeiro julgamento foi marcado para 19 de março, e eu fui arrolado como testemunha no caso. Tive que depor perante uma Comissão Disciplinar da CBF. Não foi uma boa experiência, pois tive a viva impressão de que estava lá fazendo papel de palhaço. Os auditores mostravam visível desinteresse pelo que era dito e o chefe da comissão, que não parava de olhar para um bilhete aéreo, tentava acelerar a sessão. Resultado: confirmação do acesso dos catarinenses.
O Caxias não se deu por vencido e impetrou um recurso. A questão foi julgada em segunda instância pelo Tribunal Pleno do STJD, em 11 de abril. Dessa vez, os auditores levaram os fatos em conta e puniram o Figueirense, dando à equipe gaúcha o acesso ao Campeonato Brasileiro da Série A. Tudo parecia resolvido. Obras começaram a ser feitas no Estádio Centenário para melhorar a estrutura e receber os grandes jogos da Série A.
Mas o Caxias não se deu conta de que, no futebol brasileiro, tudo é possível. Em 20 de junho, enquanto a opinião pública desviava a atenção para a Copa do Mundo que ocorria no Japão e na Coreia do Sul, o mesmo STJD que havia dado a vitória ao Caxias mudava de opinião. Ou melhor, incluía uma sórdida revisão da decisão tomada meses antes: o Figueirense continuava punido, perdia os pontos e a vitória, mas o gol da equipe era validado. Era o suficiente para colocar os catarinenses na primeira divisão. O jogo mais longo que vi tinha, finalmente, acabado.
O fato é que a briga tinha extrapolado o âmbito esportivo e se tornado um duelo permeado por interesses políticos e comerciais, onde as cartolas catarinenses fizeram uma mobilização mais eficiente que os gaúchos.
Como exemplo desse jogo pesado, anos depois, durante um desentendimento com o meia Rivaldo, o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, deixou escapar em uma gravação que “era preciso lembrar ao Rivaldo que, quando o time dele em Santa Catarina precisou de um apoio, a gente ajudou”. Rivaldo era sócio, juntamente com outro jogador, César Sampaio, da CSR Futebol e Marketing, empresa responsável por gerir o futebol do Figueirense em 2001.
Foi uma grande frustração para o Caxias, que até tentou reverter novamente a decisão, mas não obteve sucesso. O fato foi determinante para o futuro dos dois clubes: o Figueirense foi jogar a Série A, onde de forma competente se manteve durante muitos anos, enquanto o Caxias ficou na Série B, de onde foi rebaixado logo depois, penando durante décadas em divisões inferiores do futebol brasileiro, como bem sabe o torcedor grená.
Passados quase 23 anos, o Caxias está em um período de retomada, recém-vindo de acesso e reorganizado para recuperar o tempo perdido. Já o Figueirense amarga crises administrativas e rebaixamentos, e por pouco não foi para a Série D no ano passado. O mundo gira, e o reencontro deste domingo é uma prova disso.