A notícia do desaparecimento de uma criança autista após sair da Escola Municipal de Ensino Fundamental Jardim América, localizada no bairro de mesmo nome, em Passo Fundo, na última quarta-feira (13), levantou a discussão sobre o número de monitores para alunos com transtornos ou deficiências nas escolas do município.
Benjamin, seis anos, foi encontrado horas depois do desaparecimento a quatro quilômetros de distância da escola, mas deixou pais e professores em estado de alerta. Segundo o pai da criança, Sidnei Marcelo dos Santos, o portão que dá acesso ao ginásio de esportes onde estava a criança estava aberto, o que facilitou a saída dele do local.
O pai conta que o menino trocou de escola recentemente, porque passou do ensino infantil para o fundamental, o que causou preocupação à família. Segundo ele, a nova instituição não tem monitor para acompanhá-lo nas atividades.
— Fizemos uma reunião com a direção da escola e, para ele não ficar sem aula, pois ainda não há uma previsão de monitor, a escola sugeriu que ele frequentasse as aulas e ficasse até o meio da tarde, até se acostumar. A gente confiou na escola— desabafa o pai.
A lei federal nº 3205/2021 determina que toda criança com diagnóstico de deficiência e que tenha dificuldades de locomoção, higiene, alimentação e segurança tem direito ao acompanhamento de um monitor individual. Conforme Santos, a família abriu um protocolo para solicitar o profissional ao menino na Secretaria Municipal de Educação (SME), mas até o momento não foi disponibilizado.
A situação preocupa pois esse não é o único caso em que crianças saem da escola em momentos que estão sem supervisão. Também na quarta-feira, um caso semelhante aconteceu na Escola Municipal de Educação Infantil Rita Sirotsky, localizada na Avenida Aspirante Jenner.
Apesar de ter monitor em sala de aula, a pequena Sofia, quatro anos, saiu da escola, atravessou a avenida — que costuma ter trânsito intenso de veículos — e foi até uma sorveteria que fica em frente. A menina estuda com a irmã gêmea, Betina, e as duas receberam o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA).
— Ela abriu dois portões, parou na faixa, um carro diminuiu a velocidade, e ela atravessou a avenida sem olhar para os lados. Foi para a sorveteria, onde conheciam ela, e (os proprietários) avisaram a escola, pois até então a direção não tinha dado falta. Mas e se ela não vai para a sorveteria? — questiona a mãe Francesca Iaricci, que só soube do ocorrido quando o pai foi buscar as meninas na saída da escola.
Segundo o diretor da escola, Rudimar Gomes, a professora percebeu a saída da criança em menos de dois minutos e saiu para buscá-la. Dessa forma, rejeita que foi a sorveteria que informou sobre a saída da aluna.
— Verificando as câmeras da escola, um minuto e 10 segundos após a saída a professora já nota a saída da criança. Nesse momento a professora deixa a turma e vai até a sorveteria. Nós não fomos informados pela sorveteria. A professora pega a criança e retorna para a escola. Todo esse tempo entre a saída e retorno com a professora se dá em quatro minutos. Nós somente avisamos o pai quando foi buscá-la, em razão da situação já ter sido resolvida— pontua o diretor.
Segundo a mãe, Sofia ainda não tem a dimensão do que aconteceu e está bem, já a irmã Betina está abalada e repete diariamente que a irmã fugiu da escola.
Assunto está na Justiça
A falta de monitores nas escolas municipais de Passo Fundo já virou processo judicial. Após inúmeras denúncias de pais, o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública contra a prefeitura em 10 de novembro de 2022. O processo corre em segredo de Justiça.
Questionado por GZH, o MP informou em nota que o processo foi julgado procedente pelo Juizado Regional da Infância e Juventude de Passo Fundo em 11 de dezembro de 2023 e, no momento, está em grau de recurso. Segundo a Promotoria Regional da Educação (Preduc), o serviço pedagógico, educacional e de monitoria são de responsabilidade da prefeitura de Passo Fundo e cabe ao MP fiscalizar.
Uma das mães que busca insistentemente o apoio judicial para garantir a presença de monitor em sala de aula é a Maiara Karina Posse, mãe da Anna Karolina Posse Nicoletti Antunes, hoje com 13 anos. Desde cedo a filha tem diagnóstico de Síndrome de Stickler — uma doença rara que acomete a visão, a audição, anormalidades craniofaciais e musculoesqueléticas. Mais tarde, também veio o diagnóstico de TEA. Por isso, a mãe busca ajuda junto ao MP há pelo menos nove anos.
No ano passado, a família teve uma sentença judicial favorável e, só por isso, hoje a adolescente tem direito ao acompanhamento exclusivo com monitor. O que nem sempre acontece, segundo Karina.
— Como tem muitos alunos com transtornos que precisam de acompanhamento, muitas vezes o monitor se divide. Sem contar que a carga horária desse profissional não atende à mesma carga horária da Anna — ele faz 15 horas semanais e ela 20 — então não foram raras as vezes que a minha filha precisou entrar mais tarde e sair mais cedo da escola, antes da decisão judicial. Sem contar as vezes que o monitor não está na escola, aí o professor precisa se dividir entre 27 alunos e mais dois ou três estudantes com laudo, que também precisariam desse apoio individual e não têm — pontuou a mãe.
Por isso, a luta da Karina não terminou com a vitória judicial da filha. Ela faz parte de um grupo de mães que busca ajuda para conseguir que os filhos frequentem a escola com acompanhamento. Mas, segundo ela, há uma omissão geral da sociedade nesse assunto.
— Quando o município fala que cumpre a lei, ele cumpre a lei que trata dos monitores e não da inclusão da pessoa com deficiência. É por isso que as famílias estão pedindo socorro. É um desgaste emocional muito grande, mas nós não vamos desistir. Eu só quero que os nossos filhos tenham o direito de aprender como todos os outros. Todos dizem que estão fazendo tudo o que podem, mas esse "tudo o que podem" ainda é muito pouco — pontuou Karina.
Professores também cobram
O Centro Municipal de Professores (CMP Sindicato), que representa o magistério municipal, afirma que a falta de monitores para auxiliar no acompanhamento de alunos incluídos é um problema crônico na cidade. No ano passado, a entidade fez uma denúncia no MP, que foi anexada ao processo já existente. No caso da Emef Jardim América, segundo o CMP, são mais de 200 alunos, quase 10% com laudo e nenhum monitor para acompanhamento.
— Essa não é uma realidade somente dessa escola. O sindicato tem apurado o déficit de monitores em várias escolas do município, que atendem um número crescente de alunos incluídos, sem o suporte necessário — diz uma nota publicada em 13 de março.
Segundo o diretor do CMP Sindicato, Tiago Machado, o cenário atual é um pouco melhor do que o enfrentado em 2022, quando a entidade ingressou com a ação no Ministério Público, mas ainda não é o suficiente:
— Estamos falando de uma rede de mais de 17 mil alunos, sendo mil com laudo (de algum transtorno). Nesse ano, começamos com um número de monitores que dão conta de parte da situação, mas ainda fica aquém.
O sindicato também questiona a preparação dos profissionais. É o que alerta a diretora jurídica do CMP, Débora de Araújo Soares:
— A maioria dos que chegam às escolas são pessoas que terminaram o ensino médio, sem experiência ou a qualificação necessária. Como o salário não é atraente, vemos um rodízio muito grande desses profissionais.
Além disso, sem a figura do monitor, a função principal do professor em sala de aula acaba comprometida.
— O professor existe para transmitir o conhecimento de uma forma metodológica. Quando o aluno demanda atenções especiais, como higiene, segurança, locomoção e alimentação, se não tiver a figura do monitor, é o professor acaba tendo que fazer isso. Então, acaba se ocupando de uma função que não é sua. Se você coloca isso em um ambiente com 20 a 25 alunos, a parte pedagógica, que é a função principal do professor existir, fica completamente comprometida — pontua Machado.
Questionada sobre a demanda de monitores para atender esse público, a Associação Amigos dos Autistas (Auma) de Passo Fundo afirmou que acompanha os casos conforme é procurada por pais.
— Estamos sempre acompanhando, conversamos com a SME e Seduc quando necessário. Sabemos que muitos monitores do ano passado estão com seus contratos vencendo e que a prefeitura já trabalha na capacitação dos profissionais. A gente busca fazer essa ponte junto às secretarias do Estado ou do município para ver qual é a situação e previsão para que os monitores iniciem junto as crianças — afirma o presidente Emerson Drebes.
O que diz a prefeitura de Passo Fundo
Segundo o secretário de Educação, Adriano Canabarro Teixeira, atualmente o município tem 213 monitores trabalhando para um universo de 1.187 crianças com laudo incluídas nas escolas. O número, de acordo com Teixeira, ainda é abaixo do ideal, mas ele ressalta que já houve avanço.
— Foi contratada uma empresa terceirizada que realizou a contratação de 100 novos monitores no ano passado. O município ainda tem capacidade de contratação de monitores, mas o grande problema é a falta de interesse na função. Também foram oferecidas outras 347 vagas através de estágio de licenciatura, mas apenas 113 foram preenchidas — esclareceu o secretário.
Em breve o município deve abrir um novo processo seletivo emergencial para monitores e fazer visitas às turmas de licenciatura nas instituições de ensino superior em busca de interessados.
— Dizem que o salário é baixo, mas essas vagas de estágio para 30 horas semanais o valor é de R$ 1.164, ou seja, é compatível com a função. Porém, como até os cursos de licenciatura estão com baixa procura, acaba se refletindo no baixo interesse por estágios nessas áreas. Sabemos que ainda estamos longe do ideal, mas há que se reconhecer que houve uma melhora no assunto.
Segundo o procurador-geral do município, Adolfo de Freitas, a lei permite um mesmo monitor atenda até três crianças por turno, o que significa que um mesmo profissional pode atender até seis alunos por dia.
— Não temos crianças que não são atendidas, sem monitoria; elas são mudadas de sala de aula, nós deslocamos os monitores. Certamente aquelas crianças que têm diagnóstico, que necessitam de monitores, são monitoradas. O que acontece muitas vezes é que os pais gostariam que essas crianças tivessem monitores, mas às vezes o monitor, em vez de fazer a inclusão, ele acaba fazendo a exclusão, porque a criança fica vinculada ao monitor, que é um adulto, e deixa de interagir com seus colegas de aula, que são crianças — pontuou Freitas.
Segundo o secretário de educação, o que é levado em consideração pelo município é uma resolução do Conselho Estadual de Educação, que dá a entender que um mesmo monitor pode atender até três crianças.
Sobre o caso ocorrido na Emef Jardim América, o procurador afirmou que o menino é atendido pela rede há pelo menos três anos e está em período de adaptação na escola.
— O menino já tinha vínculos com aquela professora (da escola anterior), já tinha três anos de rede pública municipal, sempre foi atendido. Acontece que saiu da série infantil e foi para as séries iniciais, então teve que mudar de escola. Quando mudou, estava num momento de transição e sob avaliação desta professora — reiterou Freitas.
No caso em específico, a prefeitura informou que o estudante começou a ser atendido três dias por semana e frequentava a escola até as 15h. Segundo o município, uma professora de atendimento educacional especializado acompanhava o aluno e dois familiares estavam na escola no momento do desaparecimento.
Ainda, a prefeitura disse que a orientação repassada para todas as escolas é manter as portas e portões trancados e que abriu um procedimento interno nas duas escolas para averiguar as circunstâncias das fugas.