Tão grave quanto a inapropriada alternativa de recorrer a uma nova contabilidade criativa para financiar o programa agora chamado pelo governo de Renda Cidadã, fixação do presidente Jair Bolsonaro, é a constatação cada vez mais nítida de um abandono pelo Planalto da agenda liberal e de responsabilidade fiscal para se abraçar à do populismo, que tanto mal fez ao país nas gestões petistas. Em nome de interesses eleitoreiros, parece não haver mal algum em rifar o futuro com mais irresponsabilidade com as contas públicas, sem que sequer o Brasil tenha se recuperado da crise anterior gerada pelas mesmas motivações.
A nova barbeiragem aumenta ainda a percepção de falta de rumo do governo
A saída esdrúxula de tentar dar um calote nos precatórios e desviar verbas do Fundeb, destinadas à educação, para turbinar o programa, com a burla do teto de gastos, é uma excrescência e cheira a truque, como bem retratou o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, em reação imediata à proposta do governo bombardeada por todos os lados. O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco também interpretou de forma precisa a pedalada que o governo Bolsonaro teve a ousadia de propor com a suspensão do pagamento de precatórios. "Calotear um calote é uma reincidência", definiu.
Com a queda contínua da aprovação ao longo de 2019 e durante os primeiros meses da pandemia, Bolsonaro se deslumbrou com a melhora de sua avaliação graças ao pagamento do auxílio emergencial a quase 70 milhões de brasileiros, que nem sequer foi uma ideia gestada no governo. Agora, quer a qualquer custo – literalmente, parece – manter e aumentar a sua popularidade, obstinado apenas pela reeleição em 2022, enquanto terceiriza responsabilidades e foge de decisões que são difíceis mas necessárias, movido apenas pelo cálculo eleitoral.
O problema é que, apesar de o programa até ter seus méritos, a situação fiscal e orçamentária do país faz com que quase inexista margem para destinar mais recursos para o Bolsa Família vitaminado de Bolsonaro. O Planalto, por outro lado, segue resistindo a cortar gastos. Outras alternativas, como aumentar impostos, redirecionar recursos ou se endividar e imprimir dinheiro, da mesma forma, são péssimas.
A nova barbeiragem aumenta ainda a percepção de falta de rumo do governo, que se especializou em soltar balões de ensaio em seguida esvaziados pela repercussão negativa e, de forma cíclica, acena constantemente com uma nova CPMF, privatizações e reformas que não andam. O benefício da dúvida se esgota também perante os agentes do mercado, como mostram as quedas da bolsa nos últimos dias e as altas do dólar e dos juros longos – estes, um sintoma de desarranjos maiores em um prazo mais longo.
O governo deveria entender que não há mágica e assim se concentrar em temas como uma reforma administrativa de verdade que cortasse os privilégios da elite do funcionalismo atual. Ao mesmo tempo, gerar um clima de distensão no país e de confiança internacional, algo hoje distante pelas constantes crises políticas e a gestão ambiental desastrosa. Seria um primeiro passo para a economia deslanchar e, assim, de forma natural, atrair investimentos, encorajar negócios, criar emprego e renda e elevar a arrecadação. Contabilidade criativa e pedaladas fazem parte do roteiro de um filme de terror a que os brasileiros já assistiram, e uma reprise seria catastrófica.