Em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo nos Estados Unidos de Donald Trump, uma medicação que reiterados estudos mostram não ter eficácia comprovada foi elevada aos status de troféu, símbolo político e motivo de uma insistência intrigante por parte de um governante. Pois é o que acontece com a cloroquina no Brasil de Jair Bolsonaro. O gesto do presidente de erguer uma caixinha do remédio diante de apoiadores que se concentravam na frente do Palácio da Alvorada, no domingo, tem uma carga simbólica que revela muito sobre os tempos sombrios de pandemia vividos no país. De forma tragicômica, Bolsonaro alçou a cloroquina à condição de um elixir que traz a cura milagrosa e a transformou em bandeira ideológica de uma espécie de seita que, por desespero, falta de informação ou crença cega no líder, não tem a mínima dúvida de que o presidente da República guarda a resposta que milhares dos mais brilhantes cientistas do planeta buscam incansavelmente.
É no mínimo temerário o presidente do Brasil se converter em garoto-propaganda de uma medicação que pode causar sérios efeitos colaterais
Fazer uso ou não da cloroquina, bem como de outros medicamentos, é uma decisão do médico com seu paciente, como bem lembrou ontem o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Marcelo Matias, em entrevista ao programa Atualidade, da Rádio Gaúcha. Se ambos estão em acordo com o tratamento com a cloroquina, não há problema em que sigam esse caminho. A questão é que ninguém que tenha sido tratado com o medicamento pode atestar que foi ele que o curou, como faz crer Bolsonaro, imitado agora pelo ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni. Os mais recentes estudos descartam ações benéficas da cloroquina. Mas mesmo que todos estejam errados até o momento, é no mínimo temerário o presidente do Brasil se converter em garoto-propaganda de uma medicação que pode causar sérios efeitos colaterais, muitas vezes em cenas que lembram merchandising de mau gosto e seriam apenas anedóticas se não fossem perigosas e antiéticas. Ainda faltam estudos, por exemplo, que demonstrem as taxas de pacientes que foram tratados com cloroquina e mesmo assim não resistiram ao vírus. Ou seja, cautela e responsabilidade deveriam vir em primeiro lugar em qualquer abordagem ou teoria sobre o tratamento para infectados pela covid-19, uma postura que deveria nortear, mais do que ninguém, o comportamento do líder máximo de um país.
Bolsonaro sabe, ou deveria saber, que a liderança ocorre pelo exemplo – e seu comportamento contribui decisivamente para o desastre que é a gestão da pandemia no Brasil. Ao fazer seus seguidores acreditarem que a cura está à mão mas seria sonegada por algum viés ideológico, o presidente produz dois efeitos mais nítidos e imediatos: expõe o Brasil ainda mais ao ridículo aos olhos dos mundo e estimula uma legião de apoiadores a abdicarem de cuidados necessários, como o distanciamento social e o uso de máscaras, pois bastaria uma pílula prodigiosa e acessível para escapar da estatística letal do coronavírus.
Felizmente, Bolsonaro, bem como Onyx Lorenzoni, estão se recuperando adequadamente da doença. Mas, pela posição que ocupam, seria recomendável que guardassem para si suas crenças e se fixassem na ciência e nos estudos sérios como métodos governamentais para que os brasileiros não sofram ainda mais com a pandemia. O negacionismo e a fé desvairada na cloroquina, até agora, não produziram bons resultados. Bem pelo contrário, como demonstram as cerca de 80 mil mortes no país.