Não bastassem a pandemia e os problemas humanos e econômicos decorrentes, o Brasil se vê às voltas agora com uma preocupante escalada extremista de desfecho imprevisível. As manifestações que vão se disseminando em capitais nos fins de semana são a face mais evidente de um confronto que migra das redes sociais para os núcleos de poder em Brasília e retorna para a realidade do país em um diapasão cada vez mais grave e sectário.
Em meio à maior emergência sanitária do século, o crescendo de radicalismo é mais do que uma temeridade: é uma irresponsabilidade
No caldeirão de Brasília, o Palácio do Planalto ferve em teorias conspiratórias, a principal delas a de que há um complô entre líderes dos outros dois poderes, o Congresso e o Judiciário, para destituir o presidente Jair Bolsonaro. Como resultado da paranoia palaciana, o presidente abre as comportas para a radicalização de seus seguidores, ao dar curso à teoria e frequentar manifestações nas quais se pedem intervenção militar e o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF). No cúmulo do sectarismo, em uma assustadora referência a manifestações racistas, uma falange bolsonarista marchou à luz de tochas para um protesto diante do STF.
Como era previsível, radicalismo de um lado leva ao de outro, e assim começaram a pipocar pelo país manifestações de um certo movimento autodenominado "antifascista". A mais estridente delas ocorreu na Avenida Paulista, em São Paulo, no domingo, quando torcidas organizadas, mimetizadas sob um vago ato "pró-democracia", demonstraram aquilo que sabem fazer de melhor: desprezar outras correntes de pensamento, atiçar adversários, provocar a polícia e arrumar briga.
Na saraivada de atos e ações fora de tom, não se excluem também gestos no mínimo controversos de ministros da Suprema Corte. A instauração de um inquérito para investigar e julgar, pelo mesmo STF, ameaças e ataques aos ministros rendeu suspeitas de corporativismo e de desvio de função da Suprema Corte. Da mesma forma, não foi sem estranhamento de muitos juristas que o ministro Celso de Mello decidiu liberar virtualmente a íntegra de uma reunião reservada do ministério de Bolsonaro, ainda que apenas algumas passagens tivessem relação direta com a investigação sobre eventual interferência presidencial na Polícia Federal.
Tais ações, seguidas de declarações de teor político que se tornam públicas, trazem a sensação de que também ministros do STF, por mais sinceras que possam ser as intenções, se movem por convicções além da lei, o que desinfla a aura de imparcialidade do Supremo e robustece discursos contra a própria Corte em bolsões radicais. O próprio núcleo militar do Planalto, identificado inicialmente como um poder moderador, vem se alinhando gradativamente ao lado daqueles que enxergam um dedo político em iniciativas de ministros do Supremo, reduzindo o território da moderação dentro do Planalto.
Em tempos normais, as desconfianças de parte a parte já teriam o condão de gerar instabilidades e fissuras no tecido democrático. Em meio à maior emergência sanitária do século, o crescendo de radicalismo é mais do que uma temeridade: é uma irresponsabilidade que será julgada pelas gerações futuras e seguramente apontada como um reflexo da combinação de mentes perturbadas por desinformações com sectarismos estimulados via redes sociais. Enquanto o Brasil se encaminha para o topo da crise do coronavírus, é preciso dar um freio às radicalizações. No Brasil de hoje, é fácil brigar e apontar os outros como responsáveis pela escalada de ataques. Antes que seja tarde demais, os espíritos precisam ser desarmados por todos aqueles que têm poder para tanto.