Vista por qualquer ângulo, a transposição da marca de mil mortes notificadas por coronavírus por dia deveria ser suficiente para acordar o presidente Jair Bolsonaro de sua conhecida letargia no enfrentamento da pandemia. A estatística indica que, em dois meses, a covid-19 se transformou na principal causa mortis no Brasil, acima de infartos e AVCs, que matam um média de 980 pessoas por dia, e de cânceres, com 624.
Um líder preocupado com o destino de todos os governados trataria de unir a nação por meio de uma articulação sólida com os demais poderes e lideranças
A partir de exemplos de vizinhos do Brasil, como Argentina, Uruguai e Paraguai, constata-se que tal quantidade de mortes poderia ter sido evitada se houvesse uma liderança nacional capaz de pôr em ação iniciativas primárias ao compreender a dimensão do momento histórico e assumir as responsabilidades inerentes ao cargo nesta dura travessia. O que se vê é o oposto: um país sobressaltado por suspeitas de proteção imoral do clã familiar e ainda mais enfraquecido e desunido por força e motivação de seu principal governante, que segue em constante campanha eleitoral e luta ideológica.
Um líder preocupado com o destino de todos os governados trataria de unir a nação por meio de uma articulação sólida com os demais poderes e lideranças, particularmente governadores e prefeitos. Na prática, o Bolsonaro que estimula levantes contra governadores não logrou pôr de pé o mais primário plano nacional de enfrentamento sistêmico da doença, cujo primeiro objetivo seria definir que atividades deveriam permanecer fechadas, onde e em que condições. Na ausência de estratégia, criou-se um vácuo de comunicação, articulação e liderança, visível de ponta a ponta no governo – desde a inacreditável substituição de dois ministros da Saúde em meio à pandemia até a incapacidade de fazer chegar às microempresas um socorro urgente.
Não surpreende, portanto, que o país tenha ascendido celeremente ao topo dos países mais atingidos pelo coronavírus. Como em uma nau sem rumo, a sensação é de que a Presidência da República vagueia à deriva em uma tempestade movida pelos ventos de teses lunáticas e inconsequentes. O presidente se comporta cada vez mais de forma errática, em um ziguezague entre declarações estapafúrdias e alienações que lhe sopram aos ouvidos. Com sua obsessão pela cloroquina, Bolsonaro demonstra que seu único plano para enfrentar o coronavírus é estimular o uso de um medicamento que incontáveis estudos apontam não ser eficaz no tratamento da doença. Como deputado, lembre-se, Bolsonaro também se notabilizou por duas obsessões: a defesa de uma fraude científica chamada "pílula do câncer", da qual foi um dos autores do projeto de liberação, e da unção do nióbio ao panteão dos salvadores do Brasil.
Na Presidência, a irresponsabilidade somada à incapacidade de permitir que gente sensata arquitete e execute uma estratégia coerente produzem uma tragédia irreparável em um momento de emergência nacional. No futuro, a História vai olhar para trás e, como sempre, promover seu julgamento implacável com os líderes que fracassaram nos momentos mais críticos das nações. Infelizmente, para angústia de milhões de brasileiros que literalmente têm suas vidas em suspenso pela inércia presidencial, Bolsonaro será um deles.