O presidente da República também tem de ser súdito das leis, ressaltou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, ao autorizar a abertura de inquérito para investigar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro contra Jair Bolsonaro. Na exemplar peça tecida pelo decano da Corte, sobressai exatamente este conceito pétreo de que ninguém, nem sequer o ocupante da principal posição pública do país, está imune a ter de cumprir a Constituição e as normas que regem a sociedade. Tampouco fica imune a responder por seus atos e ser submetido às devidas punições caso sua culpa seja comprovada no decorrer do processo.
O inquérito, a pedido do PGR, Augusto Aras, é o caminho correto para esclarecer os fatos e as graves imputações que Moro apontou contra seu ex-chefe
O inquérito, a pedido do procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, é o caminho correto para esclarecer os fatos e as graves imputações que Moro apontou contra seu ex-chefe, especialmente a pretensa busca pelo controle político da Polícia Federal (PF), órgão que tem de estar sempre a serviço do Estado, e não de um governo, e por isso merece a proteção da impessoalidade. O caminho judicial é o trajeto mais indicado para dirimir as dúvidas que pairam sobre a conduta do presidente e também para evitar bate-bocas públicos em espaços como redes sociais, enquanto as atenções do país e do governo têm de estar voltadas essencialmente para o combate ao novo coronavírus e às medidas para mitigar os estragos econômicos e sociais da pandemia.
A própria PF, determinou Celso de Mello, terá até 60 dias para ouvir Moro, que precisará apresentar provas robustas sobre as suas acusações. Os brasileiros merecem o esclarecimento da embaraçosa situação o mais rápido possível. Em meio a uma emergência sanitária, com a nação precisando direcionar energias para salvar vidas e empregos, não é desejável manter um prolongado véu de suspeitas sobre o presidente, acusado de agir para proteger filhos em maus lençóis. O próprio Sergio Moro, é bom lembrar, estará sob escrutínio.
Da mesma forma que o decano chama atenção para a necessidade de reafirmar valores da República como a igualdade dos cidadãos perante a lei, é preciso estar atento aos movimentos dos novos ocupantes dos cargos de ministro da Justiça e de diretor-geral da PF. André Mendonça e Alexandre Ramagem terão seus atos vigiados de perto e precisarão estar atentos para que suas ações não sejam interpretadas como parte de um esquema de favorecimento ao clã presidencial. Será de particular observação a atuação da Polícia Federal, que se consolidou como instituição de grande prestígio perante a sociedade brasileira pela atuação decisiva na descoberta e responsabilização pelos recentes e escabrosos escândalos de corrupção.
A corporação é maior do que o seu eventual diretor-geral e certamente saberá se esquivar de eventuais tentativas de manipulação de investigações, sejam quais forem os interesses envolvidos. Além da resistência interna, seus quadros certamente terão o apoio e a vigilância de mecanismos de acompanhamento e correção, como o Ministério Público Federal, além da atenção da imprensa, para denunciar e impedir que um organismo destinado a zelar pelo interesse público se transforme em alvo de interferências indevidas para se converter em uma polícia privada, a serviço do entorno do poder.