Acima de nomes de ministros e presidentes, sempre transitórios, e muito acima de slogans de campanha eleitoral, estão valores e princípios que dão forma a uma Nação, à democracia e ao Estado de direito. É a esses princípios que o Brasil, os brasileiros e todas as suas instituições permanentes devem se abraçar neste momento de intensa turbulência, quando a maior crise mundial da história recente se soma a uma aguda instabilidade política interna, motivada por um presidente sem noção de limites e sem apego à liturgia do cargo e mesmo ao juramento que proferiu ao tomar posse, em 1º de janeiro de 2019.
A democracia e o Estado de direito, com o respeito às leis, não são valores passageiros
A ruidosa saída de Sergio Moro, a estrela-guia do que seria um governo focado no combate à corrupção, é mais um capítulo no compêndio de desvarios e crises que o clã Bolsonaro e um grupo cada vez mais reduzido de seguidores fanáticos se empenham em criar e reverberar. Ao ser denunciado pelo próprio ministro da Justiça por tentar transformar a PF em uma polícia privada, monta-se o cenário para uma crise sem precedentes na história recente, período no qual a Polícia Federal foi guindada ao panteão das mais admiradas instituições de Estado por ter desvendado o maior esquema de corrupção da República. Sob o peso do dedo de Sergio Moro, Bolsonaro governará em sobressalto permanente, até que as suspeitas sejam esclarecidas _ entre as quais a de que o próximo dirigente da PF não será apenas um braço a serviço da família do presidente para ocultar eventuais malfeitos.
A esta altura, não resta dúvida de que a situação política de Bolsonaro vai se tornando crescentemente insustentável. Primeiro, foram as demissões extemporâneas de ministros que cruzaram o caminho da família. Depois, a tentativa de nomear o próprio filho para o mais vistoso cargo externo da diplomacia brasileira. A ruptura com antigos aliados e os governadores, a conivência com a inépcia de extremistas em ministérios e cargos importantes, como o da Educação, a desfaçatez com o meio ambiente e a imagem do país, os ataques ao Congresso e o estímulo ao ódio, em vez de união entre brasileiros foram isolando Bolsonaro em uma bolha cada vez mais radical e distante da realidade.
Não bastasse isso, o presidente de juntou a uma quadra de governantes tresloucados ao desfiar teses temerárias e desdenhar da maior ameaça à saúde mundial. Quando tudo isso já parecia surreal, Bolsonaro é flagrado pelo próprio ministro da Justiça ao tentar destruir a autonomia investigativa da Polícia federal, algo que nem os governantes mais suspeitos e acuados do passado ousaram praticar.
No final da tarde, ao tentar rebater Moro, Bolsonaro fez um pronunciamento confuso, não esclareceu suspeitas e admitiu ter exigido a troca do diretor-geral da PF. Uma fala constrangedora, ecoando o forte revés no apoio das redes sociais que sofreu após as revelações do agora ex-ministro.
Nas últimas três décadas e meia, desde a morte de Tancredo Neves antes da posse, o Brasil tem atravessado seguidas crises econômicas e institucionais sem se desviar do caminho do Estado de direito. Na história recente, o país já teve governos cleptocratas e irresponsáveis, e ainda assim os caminhos de saída sempre foram a Justiça, os processos constitucionais e eleições livres e limpas para, dentro da devida legalidade democrática, se procederem as mudanças que os brasileiros e seus representantes assim entenderam.
Se em tempos normais o Brasil já não pode se dar ao luxo de ficar à deriva por crises políticas, nesta emergência de saúde a estabilidade política e econômica é um bem primordial para vencermos um inimigo invisível. Portanto, ao contrário do presidente, que endossa pessoalmente manifestações de vivandeiras que pedem pela volta do AI-5, não há e não pode haver saídas fora de qualquer solução constitucional. A democracia e o Estado de direito, com o respeito às leis, não são valores passageiros. São princípios pétreos em quaisquer circunstâncias, e é em torno deles que devem se unir agora todos os brasileiros responsáveis.