Em meio à pandemia de coronavírus, na qual os esforços deviam se conjugar em uma direção, o Brasil vive em clima de final de campeonato de futebol a adoção de protocolos de tratamento para enfrentar a doença. Sem conhecimento técnico, sem experiência ou treinamento, estranhos ao mundo científico, a começar pelo presidente da República, palpitam com fervor e paixão, como se a cura já estivesse à mão e, por birra ou pirraça, os mais renomados médicos e cientistas do planeta fizessem parte de uma conspiração em escala global para retardar a salvação de milhares de pessoas.
Ressalve-se que divergências quanto a prescrições são previsíveis e saudáveis em um ambiente racional e no mundo científico. Aliás, os incontáveis congressos médicos a cada ano são constituídos exatamente pela apresentação e discussão de casos, com seus resultados prós e contras. Longe de representar uma ciência exata, estudos médicos são submetidos a questionamentos constantes, enquanto práticas antigas são constantemente atualizadas ou substituídas. Também são frequentes recomendações distintas para um mesmo paciente – tanto que, em casos complexos, as segundas e terceiras opiniões médicas são uma rotina compreendida e defendida pela própria medicina. Observe-se que, em relação ao coronavírus, há algumas grandes linhas de tratamento em exame, entre elas a cloroquina associada ou não a antibióticos, o plasma de pacientes curados e o uso de anti-retrovirais, cada uma delas com resultados favoráveis e nem tanto.
O problema é quando a política, ou a especulação econômica, tentam se infiltrar na ciência para distorcer resultados a seu favor. Protocolos de tratamento não podem ser encarados publicamente como escalações de times de futebol nas quais cada torcedor tem a sua preferência. Eles precisam demonstrar resultados concretos, palpáveis e seguros antes de serem generalizados. Somem-se a isso as providenciais cautelas que se deve guardar diante do anúncio de avanços em tratamentos. Podem ser de fato boas novidades, mas também podem esconder movimentos que vão desde a liberação de mais recursos para determinada pesquisa a especulações com ações de fabricantes de fármacos nas bolsas de valores.
Por tudo isso, o mundo médico deve ser blindado de pressões inapropriadas. Isso não quer dizer que as autoridades sanitárias e políticas devam se omitir, ainda mais em um momento de calamidade pública. Ao contrário, podem ajudar e muito no destravamento da burocracia, dos prazos e até mesmo de ritos por vezes indolentes nas esferas públicas para que novos tratamentos sejam testados, com suas devidas aprovações ou rejeições.
Não deve, porém, o presidente Jair Bolsonaro, que se tornou conhecido por sua obsessão pela fosfoetanolamina, buscar holofotes políticos ao se transformar em arauto de uma medicação ainda sob avaliação. No caso do fosfoetanolamina, Bolsonaro foi um dos autores do projeto que autorizou seu uso no tratamento de câncer. Diante do desespero de milhares de pacientes e suas famílias, os que defendiam o uso da substância levaram falsas esperanças em momentos de dor. Pior ainda: muitos doentes abandonaram o tratamento preconizado em troca da suposta pílula milagrosa e viram seu estado se agravar.
A empulhação da fosfoetanolamina custou caro. Deve servir agora de aprendizado para, pelo menos, se colocar a ciência em primeiro lugar e, ao mesmo tempo, sem ceder a populismos de leigos, acelerar os estudos científicos que endossem ou contrariem os diferentes tratamentos para o coronavírus, incluindo-se, é claro, a cloroquina.