Por Fábio Bernardi, sócio-diretor de criação da Morya
Sabe por que a discussão de valores é tão importante em uma sociedade? Porque é o nosso olhar que determina o que as coisas são. O mundo não é como ele é, o mundo é como nós somos. Por isso, comungar da mesma visão de mundo e, mesmo assim, tolerar as diferenças, é fundamental para a sensação de sentido e de paz coletiva. Não se trata de dobrar quem pensa diferente, mas de construir o consenso sobre o tipo de país e de sociedade que queremos para o presente e para o futuro. Tomemos a questão das armas, por exemplo. É um erro reduzir a discussão apenas ao aspecto da violência e da insegurança. De um lado e de outro, aparecerão defensores com dados, teses e números que comprovam a influência de armar o cidadão. Para uns, isso aumenta a segurança individual e, por consequência, a de todos. Para outros, mais armas nas ruas significa mais conflitos e, por consequência, mais mortes. Os de direita, por defenderem uma visão mais individualista do Estado, em sua maioria, querem o armamento da população. Os de esquerda, em sua maioria, defendem o contrário. E, no meio disso, estão aqueles que flutuam ao sabor dos acontecimentos – ter um familiar morto por arma de fogo pode gerar tanto uma defesa ardorosa das armas (ele podia ter se defendido) quanto uma acusação ferrenha (se o outro não tivesse acesso à arma, a tragédia teria sido evitada).
Mas e se nos lembrarmos de que as coisas não são como são, e sim como nós somos? Então, que mundo queremos ter para nós mesmos? Por trás desse debate das armas, está uma visão de sociedade, de relações humanas e de nação. Andar armado diz o que sobre você? Diz o que sobre sua cidade ou seu país? Aumenta ou diminui o grau de confiança entre as pessoas? Melhora o elo de fidúcia com meu vizinho, com meu colega de trabalho ou com aquele motorista que acaba de me fechar naquela esquina? Que grau de traição é suportado apenas com palavras desferidas à queima-roupa? E em qual será preciso puxar o gatilho para lavar a honra e botar para fora a raiva e a vergonha? Por que ser caçador, jornalista ou colecionador ou qualquer uma das atividades liberadas por um decreto bêbado me autoriza a discutir enfiando um cano na boca de um coitado que não foi privilegiado pelo governo?
Os bons policiais, seguranças e militares são todos tementes e respeitosos com suas armas, assim como os bons surfistas temem e respeitam o mar. As sociedades precisam deles assim, preparados para usarem o privilégio e o poder que eles têm. Mas o resto de nós jamais estará pronto o suficiente para ter o poder de matar e morrer nas mãos. Ao menos, até o dia em que deixemos de achar que um tiro é um argumento.