Por Ricardo Giuliani Neto, mestre e doutor em Direito, artista plástico e escritor
O tribunal popular perdeu o sentido, reduziu-se ao espetáculo e ao cênico. Nas tragédias, embebeda manchetes e noticiários; no cotidiano da "justiça", o Júri empanturra-se de desvalidos.
Desde que o Concílio de Latrão, no longínquo 1215, aboliu os "juízos de Deus" e deu feição secular, política e estatal aos julgamentos humanos, o Júri foi fundamental na estruturação do Direito e do Estado moderno. Seus fundamentos perderam-se no tempo e a razão da sua existência – interdição política ao antigo sistema judicial nobiliário –, nos moldes de hoje, esvaiu-se no anacronismo funcional e no gosto pela teatralização ostentado por advogados e promotores. Sobre opiniões temos disposição, já sobre os fatos, nem tanto assim.
O século 21 pede um Direito e um posicionamento societal adequados ao combate eficiente da macrocriminalidade. O Direito Penal nunca resolveu as questões da humanidade, e sua exacerbação na versão verborrágica do Direito Penal do Inimigo (G. Jackobs), muito menos. Corrupção, sonegação de impostos, meio ambiente etc. pedem mais sociedade e menos Estado na tomada de decisões e no estabelecimento de interdições jurisdicionais acerca de condutas que agridem a coletividade. Os delitos do indivíduo, no caso do Júri (CF. art. 5º. XXXVIII) merecem tão somente um juiz de Direito. O Júri, o conselho de cidadãos, precisa evoluir para, em moldes de escabinato (júri misto, formado por juízes e cidadãos), julgar e valorar as ações com potencial ofensivo à sociedade.
O Tribunal do Júri, construção política e social que remonta às organizações tribais, traz consigo o viés estruturante de que o destino da sociedade deve subordinar-se ao juízo de valor expresso pela sua coletividade, subordinando o indivíduo às regras comunitárias do tempo em que tais regras devem operar socialmente. No Brasil, o Júri chega em 1822 para julgar os crimes de imprensa. Naqueles idos – e notem como adoramos e praticamos a categoria protojurídica do "me engana que eu gosto" –, dizia a lei de 18 de junho que o Júri seria formado por 24 cidadãos "bons, honrados, patriotas e inteligentes". Sim, o povo seria julgado pelos seus pares e o veredito, não fosse o príncipe, seria soberano. Lindo! Veja a vida real escancarando tribunais formados por servidores públicos, aposentados e alguma classe média. Julgam os seus "iguais". Segundo o Judiciário, mais de 70% dos réus são pardos, negros, pobres e desvalidos.
Sim, se manchetes polpudas surgirem por aí, armar-se-á o aparato cênico. Mármores, cafezinhos, capas pretas esvoaçantes e atores declamando barbaridades com ares e olhares de sabedoria. Ou, sem holofotes e manchetes, seria só a pretensão de repor "os juízos de Deus" aos anônimos de todos os dias?