Juro que tentei escrever sobre um tema leve, já que esta é a virada de um ano pesado e estou ocupando o espaço do Antonio Prata, de mão boa para o humor. Até ensaiei um texto intitulado "17 promessas que não vou cumprir em 2017", mas desisti. Não só porque, convenhamos, o que eu faço ou deixo de fazer na vida pessoal interessa apenas à minha família e aos meus amigos, mas porque ainda estou perturbado por uma infeliz coincidência da noite de 25 de dezembro.
As últimas horas do fim de semana de Natal contradisseram o sentido da festa, a celebração da vida. A morte foi protagonista, de surpresa em um caso e sem surpresa no outro. Às 21h de Brasília, soubemos que o cantor e compositor inglês George Michael, 53 anos, morrera em sua casa. Depois, descobrimos que, por volta das 20h50min de domingo, o vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas, 54 anos, foi espancado até morrer por dois rapazes em uma estação do metrô de São Paulo.
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Separados pela fama e pelo anonimato, por um oceano e por milhões e milhões de reais, esses dois homens tinham mais em comum do que serem contemporâneos. Ambos, de uma forma ou de outra, protegeram a diversidade sexual. Ambos, de uma forma ou de outra, foram vítimas do preconceito e da intolerância sexual.
George Michael escondeu durante muito tempo sua homossexualidade. Talvez tenha escondido de si próprio, para não arriscar seu sucesso nos anos 1980, quando a imprensa tratava o assunto como escândalo e a explosão da aids fez crescer a homofobia. As letras de suas canções não especificavam gênero, mas, nos clipes, seu par romântico era feminino. Os versos de Freedom! 90 deram pistas concretas ("hoje em dia eu jogo de outro jeito", "acho que tem algo que você deve saber", "há outra pessoa que tenho de ser"), mas a libertação só veio em 1998, após sua prisão por atentado ao pudor em um banheiro de Beverly Hills. "Não acho que teria tido a mesma carreira (se tivesse saído do armário antes). Meu ego poderia não ter sido satisfeito em todas as áreas. Mas eu provavelmente teria sido um homem mais feliz", disse uma vez. No mesmo ano em que se revelou, o cantor virou um ativista LGBT e passou a contribuir no combate ao HIV.
Em 1989, à época em que Michael ainda não ousava dizer o nome de seu amor, resolvi colocar um brinco, algo pouco comum para garotos de 15 anos. Obviamente, virei alvo de piadinhas homofóbicas. Secretamente, temia tomar uma surra por acharem que eu era gay. Hoje, piás de nove anos usam brinco no colégio das minhas filhas, mas gays continuam sendo alvos de piadinhas homofóbicas. Continuam tomando surras. Continuam morrendo.
Você nem precisa ser gay para morrer. Lembram daqueles irmãos gêmeos baianos que voltavam abraçados de um show?
Luiz Carlos Ruas também não era gay. Seu crime foi ser solidário. Conhecido como Índio, ele saiu em defesa de duas travestis – uma delas conhecida como Brasil (vejam o simbolismo dos apelidos) – que estavam sendo agredidas do lado de fora da Estação Dom Pedro II do metrô paulistano. Índio foi perseguido e golpeado com imensa covardia por Ricardo Martins do Nascimento e Alípio Rogério Belo dos Santos.
Não foi surpresa. Relatório do Grupo Gay da Bahia aponta 2016 como ano recorde em homicídios de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais: deve fechar em 340. Parece pouco em um país com cerca de 60 mil assassinatos ao ano. Para mim, é muito: 340 pessoas morreram por amar ("às vezes, o amor pode ser confundido com um crime", cantava George Michael em Father figure).
Meu desejo para 2017 é que ninguém mais precise esconder o que faz ou deixa de fazer em sua vida pessoal. Que ninguém mais tenha de saltar em defesa de quem joga de outro jeito. Que ninguém mais morra só por tentar ser feliz.