Em setembro deste ano, quando cheguei à Grécia para acompanhar a jornada de refugiados sírios, passei uma madrugada em vigília na beira da praia na Ilha de Kos. Em uma faixa de areia escura e deserta, distante do vaivém de turistas, procurava qualquer sinal de aproximação de novas levas de migrantes, que todos os dias aportavam ali às centenas. Nas primeiras duas horas ninguém apareceu, mas no meio da escuridão despontaram os faróis de um carro branco. Observei à distância o veículo se aproximando, rondando uma embarcação. Um fotógrafo francês que há mais tempo acompanhava a movimentação garantiu que aquele automóvel era conhecido, vinha rondando a região há pelo menos dois dias. O passeio noturno tinha sempre o mesmo objetivo: furtar os motores das embarcações recém-chegadas. Crise humanitária para uns, oportunidade de lucro ocasional para outros. A arriscada travessia tinha virado fonte de renda para atravessadores.
Não é de hoje que assistimos a oportunistas locupletando-se com tragédias. Dos preços inflacionados da água mineral durante a seca à indústria de armas que enriquece com a guerra, os bolsos de alguns ciclicamente se enchem com a penúria alheia. Nesta semana, veio uma revelação ainda mais espantosa, a de que parte dos 34 refugiados vítimas do naufrágio mais recente na costa da Turquia usava coletes salva-vidas falsos. Em vez de fazer o usuário flutuar, o produto adulterado puxava a pessoa para o fundo do mar. Seguindo as pistas, agentes fecharam uma fábrica clandestina e apreenderam 1.263 coletes piratas - vários com símbolos de marcas conhecidas para simular qualidade.
Os coletes da morte espantam, indignam e comprovam que negociantes sem escrúpulos podem causar tanto mal quanto o Estado Islâmico. Mas a tragédia nem sempre chega como espetáculo. Frequentemente é incitada por omissão. A cada notícia sobre novos naufrágios, e só em 2016 já foram pelo menos 35 mortes, somando às 3,7 mil de 2015, me pergunto por que essas pessoas estão morrendo, se no trajeto de 22 quilômetros que liga a ilha grega de Kos a Bodrum, na Turquia, existem linhas turísticas regulares, com tíquete a 17 euros. Bastaria um acordo entre os dois países, o reconhecimento de uma crise humanitária, para que os refugiados pudessem viajar em segurança. Ainda assim, milhares continuam arriscando a vida todas as noites, pagando mais de US$ 1,2 mil por um lugar clandestino que não garante a chegada. Em vez de regulamentar a marcha irrefreável de migrantes, a Europa segue tentando afugentá-los com ameaças de morte. Ignora assim que não se trata de opção: como me disseram vários deles, permanecer na Síria seria morte certa. Arriscar-se no mar representava uma chance de sobreviver.
As autoridades poderiam ter evitado essas baixas, mas julgam mais conveniente deixá-las acontecer. Entre o espetáculo dos coletes falsos e a preocupação dissimulada com seus portadores, qual morte é mais cruel?