Por Edson Luiz André de Sousa
Psicanalista, autor de “Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia” (Artes & Ecos, 2022)
Que gesto ainda seria capaz de salvar a humanidade e acionar alguma esperança em cenários de destruição que toda a guerra coloca em cena? Que palavra poderia ainda conter a fúria do Deus da carnificina que busca destruir o outro para viver? Que imagem seria necessária para dissolver o ódio que contamina corações e mentes como uma infecção generalizada? Estamos todos em luto e feridos profundamente. Isso afeta, e muito, a própria condição de pensar, sentir, imaginar e sonhar. São milhares de mortes cruéis, cenas quase impossíveis de ver: o horror e o desespero implodindo a vida. A história pode nos ajudar a entender um pouco esses cenários, mas é sempre insuficiente quando perdemos a condição da empatia e a compaixão de poder nos conectar minimamente com a dor do outro. O ódio interrompe o pensamento e qualquer chance de futuro. Sempre foi assim na história da humanidade. Terrorismo, tortura, racismo, intolerância e violência são motores de destruição, e sabemos também que são instrumentos de poder. Quando não há escuta não há diálogo, quando não há diálogo não há encontro, quando não há encontro não há vida, quando não há vida não há nada e só nos resta uma contabilidade macabra: número de mortos, de desaparecidos, de sequestrados, de prisioneiros, de refugiados, de prédios destruídos e de armamentos. E quem contará essa história para o futuro? Talvez crianças, que escreverão, tempos depois, seus poemas para tentar dar um contorno aos traumas que nunca abandonam a memória. Lembro sempre de um poema de Hilda Hilst que justamente evoca esta urgência do encontro:
Antes que o mundo acabe,
deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso...
E nos cobrimos de beijos
E de flores...
...antes que o mundo se acabe.
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
Sei que esse poema é uma utopia dentro da fumaça escura da guerra, mas é neste escombro em que o desejo se aloja que precisamos ir buscar um pouco do que ainda pode salvar. É esse desejo ferido a nossa única chance de desarmar as máquinas de guerra e abrir caminho para a palavra, que mesmo insuficiente e imprecisa é nosso único recurso de enfrentar o estranho que nos habita e nos aproximar do que não somos quando vemos o outro que não é nosso espelho. É hora de quebrar espelhos.
É muito conhecida a troca de cartas entre Einstein e Freud sobre a guerra. Einstein escreve a Freud, em julho de 1932, perguntando se existiria alguma forma de livrar a humanidade de ameaça de guerra. Freud, dois meses depois, responde em uma longa carta, da qual destaco este pequeno trecho: “Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E, sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude”.
Esses argumentos podemos encontrar, talvez, na dor das milhares de pessoas que neste momento sofrem com os desastres da guerra, para evocar a série de 82 gravuras de Goya feitas entre 1810 e 1814, os horizontes perdidos das crianças e jovens palestinos e israelenses mortas nestes últimos dias. A notícia de bebês degolados e com corpos calcinados dentro de suas casas em um kibutz pelo terrorismo do Hamas é uma das faces do horror mais abominável. O terror explode o coração da palavra. Nelson Asnis, na edição anterior deste caderno DOC (dias 14 e 15/10), em seu artigo Por Trás dos Ataques, nos esclarece sobre a maquinaria perversa de destruição que os alimenta. Assim, perdemos todos muitos futuros. Gaza sob escombros, com um bombardeio sem trégua e chorando tantas mortes da população civil, crianças, mulheres, idosos, famílias feridas profundamente e sem ter para onde se refugiar, e, certamente, muitos deles, sonhando com a paz. Os sismógrafos da dor de Israel e da Palestina serão sempre insuficientes para dar conta de toda essa destruição. A guerra será sempre o fracasso dos princípios civilizatórios e a corrosão da palavra, que é o que temos de mais precioso, aquela que pode ser dita e escutada.
Se eu fosse responder à pergunta de Einstein, meus argumentos de hoje seriam fracos, insuficientes, talvez irrelevantes, mas é o único que no momento consigo acessar. Vou beber na fonte de duas poetas, Yussara Asshar e Tat Nitzán, que tentam desenhar com palavras o ar de nossos tempos, pois quando escrevem relançam a linguagem como a única chance de encontro. Yussra Assahar vive no campo de refugiados de Jabália, em Gaza, e é graduada em língua árabe pela Universidade de Alazhar. Anoto este fragmento de um de seus poemas que tem o instigante título Para uma Tarde que Parece com Você e foi publicado no livro Gaza – Terra de Poesia (Ed. Tabla), organizado por Muhammad Taysir e com tradução de Felipe Benjamin Francisco:
...maduro como a fruta de verão
que descasco e dou a forma de um país
nas tranças de meu coração.
Veja, sou a tempestade
num passeio insano
pelas nuvens do desejo
e eu
eu sou
um sonho ressurgido que faz tremer a maldição da distância
como aquela bailarina que segura o passo
ao final da dança...
Tat Nitzán , poeta israelense e militante pela paz que já publicou no Brasil o livro de poemas O Ponto da Ternura (Lumme), com tradução de Moacir Amâncio, se dedica a registrar com seus escritos os impasses dessa paz que não chega. Sublinho este fragmento do poema Coisa Silenciosa que nos mostra, em parte, a função de quebrar espelhos:
...Nada mais silencioso
do que os golpes que se abatem sobre os outros,
não há ameaças mais inofensiva
à nossa paz de espíritos
satisfeitos.
É muda a derrota nos seus olhos,
os seus braços
permanecem imóveis...
São duas jovens poetas, de Palestina e Israel, que buscam ler o mundo de outra forma. O futuro parece distante ou mesmo impossível, mas vamos ter que acionar nossas imaginações para que isto possa, algum dia, vir a acontecer. Como continuar respirando sem essas utopias que acionam espaços em que a vida seja o bem supremo? Se algum dia pudermos pensar nessa geografia mediada pelas palavras que podem ver para além de suas fronteiras e de seus ódios, talvez possamos ainda ter uma chance antes que o mundo acabe.