Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor, autor, entre outros livros, de “Imaginar o Amanhã” (com Edson Luiz André de Sousa, ed. Diadorim, 2021)
Muitos perguntam os porquês do sucesso mundial d’O Diário de Anne Frank, um livro escrito durante o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Foi traduzido para 70 idiomas, teve 40 milhões de exemplares vendidos e foi tema de filmes e peças de teatro. Editado em 1947, levou alguns anos para conquistar o público, e, aos poucos, algumas personalidades e escritores perceberam que não era só o diário de uma adolescente, mas sim o de uma jovem escritora. Anne ganhou de presente o caderno no qual o escreveria no dia de seu aniversário de 13 anos, em 12 de junho de 1942. Portanto, há exatos 80 anos.
O humor de Anne Frank
Uma das primeiras histórias do livro é a do professor de Matemática que passou de castigo à ela por falar muito a redação: “Uma tagarela”. Anne escreveu três páginas argumentando que falar era uma característica feminina, tentaria se controlar, mas sua mãe falava tanto ou mais que ela. O professor riu, mas ela seguia falando, e então deu outra redação: “Uma tagarela incorrigível”.
Ela fez e seguiu falando, logo recebendo uma terceira redação: “Quac, quac, quac, tagarelou e dona pata”. Riram na aula, ela também, mais aí pensou que devia fazer algo diferente e pediu ajuda à amiga Sanne para escreverem em versos. Fizeram um poema sobre uma mãe pata e um pai cisne com três patinhos que grasnavam muito e foram bicados até a morte pelo pai. O professor gostou tanto que leu o poema em várias salas de aula.
O anexo secreto
No dia 9 de julho de 1942, Anne e sua família se esconderam, pois os judeus estavam sendo presos simplesmente por serem judeus. No diário, descreve o sofrimento daquelas pessoas que passaram a ter de usar uma estrela amarela, eram proibidos de andar nos bondes e de carro, de comparecer aos teatros e aos cinemas, entre outras proibições. Esse espanto de Anne leva a pergunta ainda viva de como foi possível o nazismo, que buscou matar todos os judeus da Europa. Parêntesis: poucos traçaram um painel mais amplo dos porquês do assassinato de 6 milhões de judeus do que o historiador Saul Friedländer no livro A Alemanha Nazista e os Judeus.
No dia 21 de setembro daquele ano, ela escreveu: “Atualmente, papai e eu estamos trabalhando em nossa árvore genealógica, e ele me conta alguma coisa sobre cada pessoa”. Seus antepassados marcaram a vida na comunidade judaica e na Alemanha. Ler e acompanhar a vida de uma adolescente, através de seu diário, é conviver com medos, sonhos, suas transformações na luta contra a solidão. Já tinha escrito no diário sobre a experiência de escrever: “O papel tem mais paciência do que as pessoas”. E inventa uma amiga imaginária, que chamou de Kitty, para quem passa a escrever. Descreve as tensões e discussões com sua mãe Edith, e a irmã Margot, que era mais amiga da mãe do que dela. Elogia seu pai, escrevendo que é o “mais adorável que já vi”. Era o que mais tinha paciência com sua aceleração criativa.
Nelson Mandela
O prêmio Nobel da Paz, ex-presidente da África do Sul, afirmou que Anne Frank é a prova da invencibilidade do espírito humano. Durante os 18 anos em que passou na Ilha de Robben, Mandela exortou seus companheiros de prisão a lerem o diário. Quando as páginas do único exemplar do livro que circulava pela prisão começaram a cair, os presos se revezaram, clandestinamente, a copiá-lo à luz de velas. Todos leram o diário da jovem que viveu dois anos escondida no sótão de uma casa. Muitos tempo depois, em 1994, Mandela foi homenageado pela Fundação Anne Frank e visitou a Casa de Anne Frank, em Amsterdã (Holanda). Antes, em um discurso para uma multidão em Johanesburgo, relembrou ter relido o livro enquanto estava na prisão, com o qual afirma ter “extraído muito incentivo” na luta contra o Apartheid. Comparou a luta contra o nazismo com aquela travada contra o Apartheid, expressando que ambas “são crenças evidentemente falsas e sempre serão desafiadas por pessoas como Anne Frank e estão fadadas ao fracasso”.
A casa na qual o diário foi escrito hoje é um museu visitado por 1,2 milhão de pessoas por ano, mais de 3 mil por dia. Visitei a casa de Anne Frank em fevereiro de 1969, num inverno rigoroso, com um grupo de estudantes do Colégio Israelita Brasileiro. Chegar ao Canal Prinsengracht, nº 263, foi emocionante entrar na casa, subir os degraus de dois andares por corredores estreitos até ultrapassar uma biblioteca atrás da qual se escondia o anexo secreto. Oito judeus viveram dois anos em 56 metros quadrados, e pude ver tudo que é descrito no livro, sentindo emoções e tensões que agora recordo. Minha maior curiosidade era conhecer o lugar aonde foi escrito o diário, o sótão da casa, ao qual se chega após subir uns 10 degraus de uma pequena escada íngreme. Só se podia olhar o amplo espaço desde o último degrau, e ver uma janela inclinada, a única que não tinha cortina e da qual Anne podia ver uma grande castanheira, os pássaros, o céu, as nuvens e onde sonhava com a liberdade.
Sonho de amor, 6/1/1944
“Estava sentada numa cadeira, e diante de mim estava Peter, Peter Schiff. Estávamos olhando um livro de desenhos de Mary Bos. Os olhos de Peter subitamente encontraram os meus, e fiquei olhando durante muito tempo aqueles olhos castanhos aveludados. Então, ele disse em voz baixa: “Se eu soubesse, teria procurado você há muito tempo”. Virei-me bruscamente, esmagada pela emoção. E então senti um rosto macio, cálido e suave contra o meu, e foi tão bom, tão bom.”
Anne acordou lembrando do Peter da escola, seus olhos se encheram de lágrimas. Nas semanas que se seguem ao sonho, ela escreve o quanto ele aumentou sua autoestima. E, pouco depois do sonho, estreita suas relações de amizade e de namoro com o amigo que estava no Anexo Secreto e também se chamava Peter – ele morava num quartinho onde estava a escada para o famoso sótão de que Anne tanto gostava. No seu diário, ela descreve suas transformações sexuais de adolescente, suas excitações, bem como as rebeldias.
A menina negra encontra a menina judia
A escritora brasileira Conceição Evaristo e Anne Frank viveram em tempos e espaços distantes. Foram se conhecer como leitora e escritora, gerando uma comovente relação entre quem escreve e quem lê. Ambas usaram armas simbólicas para enfrentar a violência e a crueldade. Evaristo escreve que encontrou Anne como as duas sendo meninas, e o quanto o mundo adulto não deixou viver uma escritora pelo fato de ser judia. Identifica-se como menina negra maltratada, rejeitada, podendo construir uma fraternidade com a menina judia.
Conceição Evaristo construiu uma ponte com os tempos atuais: “Digo também que estamos em dias vazios de humanos sentimentos. A leitura de O Diário de Anne Frank se faz necessária mais e mais nesses tempos em que a brutalidade e a prepotência de pessoas e grupos imperam buscando se colocar como donos do mundo”.
Tanto Nelson Mandela como Conceição Evaristo viram em Anne Frank um símbolo de luta pela liberdade, contra o racismo com a qual se identificaram.
A última carta
Sua última carta foi escrita no dia 1º de agosto de 1944, uma terça-feira. Tanto essa quanto as duas anteriores mereciam um estudo a parte, como a frase que cita: "Todo filho tem de se criar”. A frase que seu pai dizia e ela reflete sobre como foi educada, faz uma crítica, começa um processo de desidealiazação do ótimo pai – ela já estava com 15 anos. Na sua última carta, vai mais longe quando reflete sobre a acusação que ela seria um “feixe contradições”. Toma essa expressão e analisa o que isso significa, pergunta o que é contradição e daí entra, sem saber, por uma via em parte filosófica, mas também psicanalítica. “Como já disse muitas vezes, sou partida em duas.” É uma carta de duas páginas e meia, vale a pena ler, e, sem Anne saber, foi sua carta de despedida da vida.
Prisão e morte
Dia quatro de agosto de 1944, a casa e o anexo foram invadidos por um sargento da SS uniformizado e três holandeses da Polícia de Segurança. Os moradores foram presos e transferidos para Westerbork, um campo de triagem, e em 3 de setembro, deportados para Auschwitz. A mãe de Anne decidiu dar sua comida às filhas. As três dormiam juntas, unidas para sobreviver. Em fins de outubro, Margot e Anne foram levadas para Bergen-Belsen, campo de concentração perto de Hannover (Alemanha). Ambas contraíram tifo, e amigas de Anne, que a viram, descrevem como estava magra, doente e, no inverno, com neve, apenas enrolada em um cobertor. As irmãs Frank morreram entre fevereiro e março de 1945 e foram enterradas em covas coletivas.
Pesadelo
Durante os estudos do diário, tive um pesadelo. Despertei quase chorando ao recordar ataques de gente nos quais eu corria risco de vida e imaginei que seria morto. Logo percebi que estava identificado com os judeus do Anexo Secreto, pois o envolvimento com o diário fez com que entrasse no pequeno espaço de 56 metros quadrados. O resto diurno do pesadelo fora a leitura da morte de Anne Frank. Percebi, então, minha identificação com os judeus assassinados nos campos de extermínio da Europa.
Confiança no futuro
O pai de Anne, Otto Frank, foi o único sobrevivente do grupo do anexo. Apesar de estar muito doente, conseguiu se recuperar. Foi o responsável pela edição do livro O Diário de Anne Frank, bem como pelo museu de Amsterdã e pela própria fundação que leva o nome de sua filha. Anne Frank escrevendo o diário se fez escritora, com amor e humor, confiante, como na mais famosa de suas frases: “Apesar de tudo, ainda creio na bondade humana”.
Após 80 anos, o diário continua sendo muito lido por jovens que se identificam com Anne e por pessoas de todas as idades. Três semanas antes de ser presa, ela escreveu: "Vejo o mundo ser lentamente transformado numa selva, ouço o trovão que se aproxima e que, um dia, irá nos destruir também, sinto o sofrimento de milhões. E, mesmo assim, quando olho para o céu, sinto de algum modo que tudo mudará para melhor, que a crueldade também terminará, que a paz e a tranquilidade voltarão”.
Precisamos falar sobre a escritora Anne Frank
Anne é a vítima mais conhecida do nazismo, e a crueldade passada reaparece com novas roupagens. O dever da memória é lembrar os 6 milhões de judeus mortos, mas também recordar a escravidão brasileira, o assassinato de Marielle Franco, o extermínio de índios e de pessoas negras. Não devemos silenciar o passado e nem o presente para construir o futuro.
O Diário de Anne Frank emociona judeus, negros, o mundo no amor a liberdade, a bondade e a tolerância, daí o seu enorme sucesso.