O mundo assiste incrédulo, neste ano, à pior batalha militar travada no coração da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. A invasão da Rússia na Ucrânia voltou a colocar o continente "entre as horas mais sombrias", segundo palavras do chefe de política externa da União Europeia (UE), Josep Borrell.
Cenas de corpos espalhados pelas ruas e de refugiados em desespero voltaram a se tornar corriqueiras entre os europeus.
A Europa já sofreu com batalhas anteriores, várias delas, e em alguns locais preserva e exibe marcas dos tempos sombrios. Ao menos quatro campos de disputas militares históricas foram convertidos em espaços de educação no continente nas últimas décadas.
Museus e memoriais foram erguidos em regiões francesas como Normandia e Dunkirk (palcos da Segunda Guerra) e Somme (Primeira Guerra), e também na Bélgica, em Waterloo (onde houve a queda de Napoleão). O objetivo? Jamais deixar que essas histórias sejam esquecidas e, ao mesmo tempo, para que sirvam como alerta para a humanidade.
— Esses espaços servem como advertência para que as gerações do futuro saibam o horror causado pelas guerras, que a humanidade nada tem a ganhar além de dor e sofrimento. Temos errado repetidas vezes ao longo da história. Parte do erro está em não conhecer o passado. A outra parte está em não aprender com os erros — aponta o historiador gaúcho Rodrigo Trespach, que acaba de lançar o livro Grandes Guerras – De Sarajevo a Berlim, uma Nova Perspectiva sobre os Dois Maiores Conflitos do Século XX, publicação que aborda as complexidades que envolvem conflitos militares entre grandes nações. Saiba mais sobre os locais citados a seguir.
De volta ao Dia D
Em 6 de junho de 1944, a Normandia se tornava mundialmente conhecida em razão da Segunda Guerra Mundial. Foi na região noroeste francesa que milhares de soldados aliados desembarcaram para romper com as defesas nazistas e seguir o caminho para a libertar a Europa.
Desde então, a área jamais deixou de celebrar as conquistas testemunhadas naquele litoral. Os horrores das batalhas ficaram para trás, mas hoje turistas são convidados a visitar o local para refletir sobre essa terrível página da história recente.
Lá, é possível conhecer ruínas da guerra, vários museus, alguns interativos (com destaque para o Airborne Museum e o Utah Beach Landing Museum), e todas as praias onde soldados de várias nações pousaram e ficaram eternizados nas cenas em que o céu aparecia coberto por paraquedas.
Todos os anos, em junho, a região celebra o aniversário do Dia D. No início de outubro, há sempre o Fórum de Paz Mundial da Normandia, lançado em 2018. Além disso, novas estruturas continuam a ser abertas, mesmo após sete décadas do episódio histórico. Em 2021, por exemplo, foi inaugurado o Memorial Britânico da Normandia.
A localidade fica nas proximidades de Ver-sur-Mer, na Gold Beach, uma das praias em que britânicos pousaram naquele 6 de junho. No local, há os nomes dos 22 mil soldados do Reino Unido que perderam a vida entre o início de junho e 31 de agosto de 1944. Também há o nome de mulheres e homens de várias nações que lutaram junto aos britânicos, como irlandeses, franceses, holandeses, poloneses, australianos, neozelandeses, sul-africanos e norte-americanos.
As praias
- Utah Beach: a única praia de desembarque do Dia D na área do Canal da Mancha recebeu 23.250 soldados dos EUA. Restos de concreto da época da guerra podem ser observados na maré baixa.
- Omaha Beach: nesse local, 32.750 soldados pousaram no Dia D. Vários morreram na chegada.
- Gold Beach: cerca de 25 mil soldados britânicos desembarcaram aqui. Nas proximidades, há o Museu Americano Gold Beach e um grande bunker usado pelos alemães.
- Juno Beach: local de desembarque de 15 mil soldados canadenses.
- Sword Beach: a parte mais ao leste das praias de pouso do Dia D recebeu 21,4 mil soldados britânicos.
Para visitar
Acesso: para conhecer as praias do desembarque do Dia D, a recomendação é buscar hospedagem em Bayuex ou Caen, cidades libertadas por aliados na Segunda Guerra. Elas ficam a 280 quilômetros de Paris. Há a possibilidade de transporte com trem ou ônibus, mas, para ter maior autonomia nos passeios, o ideal é alugar um carro.
Gastronomia: apaixonados por queijo vão adorar saber que, entre os motivos de orgulho da região, estão o Livarot, o Neufchâtel e o Camembert da Normandia.
Trilhas: em novembro de 2019, a trilha GR21 foi votada como a favorita dos franceses. Ligando Le Tréport a Le Havre, esse caminho cruza diferentes paisagens e cidades históricas da Normandia.
A fantástica abadia: a Normandia também abriga o esplêndido Monte Saint-Michel. Trata-se de uma ilha ocupada por uma abadia que desafia a gravidade. Por séculos, foi destino de peregrinação cristã. Hoje, é patrimônio histórico da Unesco. A construção remonta ao século 8, quando Aubert, bispo da cidade vizinha de Avranches, teria afirmado que o próprio Arcanjo Miguel o pressionou a erguer uma igreja no topo da ilha. A partir de 966, duques da região, seguidos por reis franceses, apoiaram a construção de uma abadia beneditina. Edifícios foram adicionados ao longo da Idade Média. Logo, o local tornou-se centro de aprendizado, atraindo algumas das maiores mentes da Europa. O local ainda foi usado em conflitos no Canal da Mancha. As muralhas na base, por exemplo, foram erguidas para manter forças inglesas longe da estrutura.
No rastro da Operação Dínamo
Você não terá as mesmas regalias do ator Tom Hardy, mas pode viver uma rica experiência no sítio histórico de uma emblemática batalha da Segunda Guerra Mundial. Há cinco anos, ela ganhou uma versão britânica no cinema com o filme que leva o nome (em inglês) da cidade-sede do conflito: Dunkirk.
É difícil olhar o longa-metragem dirigido por Cristopher Nolan e não ter vontade de visitar a cidade no noroeste da França, quase na fronteira com a Bélgica. Ainda hoje, Dunkirk, ou Dunquerque (em português), carrega cicatrizes da Operação Dínamo, ocorrida entre 27 de maio e 4 de junho de 1940, em que cerca de 340 mil soldados das Tropas Aliadas foram evacuados para a Inglaterra em nove dias (a expectativa inicial era de resgatar 45 mil).
Além de ruínas da época, há museus e embarcações usadas na batalha. Já o Museu de Guerra de Dunkirk relembra o que considera "o maior esforço de evacuação militar da história".
Nele, há armas, uniformes, fotos, mapas de operações militares, entre outros artigos. Há também o Forte das Dunas, construído no século 19, e que segue com as marcas da ocupação nazista.
"A relativa calma e o 'combate morno' que se sucedeu após a declaração de guerra entre Reino Unido e Alemanha, em 1939, terminou de vez em 10 de maio de 1940, a partir das invasões nazistas na Holanda, na Bélgica e em Luxemburgo. Em poucos dias, o exército alemão empurrou os aliados em direção ao Oeste. Temendo sofrer milhares de baixas, o Reino Unido decidiu, então, evacuar tropas aliadas pelo mar de Dunkirk até Dover", conta o site oficial de turismo da cidade. O episódio serviu também para descartar qualquer possibilidade de acordo de paz com Adolf Hitler, medida defendida por parte do parlamento britânico até então.
— Guerra não se vence com evacuação. Devemos ir até o fim. Devemos lutar na França, nos mares, nas praias, nos campos e nas ruas. Nós nunca nos renderemos — discursou o então primeiro-ministro britânico Winston Churchill após a operação.
Para facilitar a fuga, os britânicos enviaram em direção à França quase qualquer embarcação que pudesse boiar para resgatar soldados das Tropas Aliadas. Navios de guerra, embarcações comerciais e de pesca e até barcos à vela ocupados por civis foram convocados a ajudar na Operação Dínamo.
Entre os 340 mil soldados resgatados, estavam 100 mil franceses e alguns milhares de belgas. Ainda assim, cerca de 40 mil aliados foram responsáveis por segurar o avanço alemão e tiveram de ser deixados para trás.
No primeiro episódio do documentário II Guerra em Cores (Netflix), o professor de História Militar da Universidade de Buckingham Saul David conta:
— O milagre de Dunkirk ocorreu por diversos fatores, entre eles o heroísmo das pequenas embarcações, da Marinha Real e das tropas que seguraram o perímetro e se sacrificaram.
A estrela da cidade
"Convocado" a participar do filme de Cristopher Nolan para recriar com precisão a batalha, o barco britânico Princesa Elizabeth voltou a Dunkirk em 2016. Trata-se de um barco a vapor construído entre 1926 e 1927 e que recebeu esse nome para celebrar o nascimento da rainha atual. Sozinha, a embarcação ajudou a salvar ao menos 1.673 soldados das Tropas Aliadas. Hoje, o Princesa Elizabeth fica aberto ao público para visitação. Ele foi revitalizado e convertido em um restaurante. Detalhes em princesselizabeth.eu.
De olho na maré
Sempre que a maré baixa, carcaças de embarcações naufragadas aparecem no mar de Dunkirk. Essa é outra marca deixada pela guerra. De acordo com o site oficial de turismo da cidade, é possível chegar perto de alguns desses barcos. No inverno, recomenda-se o uso de sapatos e roupas especiais em razão do frio. Um dos exemplares enterrados na areia é o britânico Crested Eagle, um barco a vapor utilizado na Operação Dínamo. Para facilitar, há guias que podem levar o turista a cada uma dessas ruínas e explicar suas origens.
Os campos de Somme
O ano é 1916. Com o objetivo de unir-se aos franceses para deter o exército alemão, aliados britânicos lançam ofensiva nas imediações do Rio Somme, no norte francês, em julho. O episódio é considerado um dos mais violentos da Primeira Guerra Mundial. Cerca de 1 milhão de soldados acabaram mortos, feridos ou desaparecidos apenas nesse combate. Historiadores classificam o episódio como uma verdadeira chacina.
Tudo começou em 1º de julho, também considerado um dos dias mais sangrentos para a história do exército britânico. Só naquela data, cerca de 20 mil deles acabaram mortos e 40 mil foram feridos ou dados como desaparecidos. Conforme Rodrigo Trespach, desde 1914 acreditava-se que o conflito se resolveria rapidamente:
— Foi um erro de cálculo terrível. O sistema de alianças, as táticas usadas, ultrapassadas diante das armas modernas, transformaram a guerra em um conflito sem mobilidade. Somme foi a tentativa de mudar o impasse estabelecido com a "guerra de trincheiras".
Para relatar o impacto das transformações tecnológicas na Primeira Guerra, o historiador relembra batalhas anteriores.
— A tecnologia foi impactante (em Somme). Em Waterloo, em 1815, Napoleão tinha apenas 246 canhões que atiravam até cem descargas cada um. Em 1870, o exército prussiano que invadiu a França disparou mais de 33 mil descargas. Na semana que antecedeu a Batalha de Somme, em 1916, a artilharia britânica despejou sobre as linhas alemãs nada menos do que 1 milhão de projéteis — conta Trespach.
Além disso, havia outras novidades, como aviões e tanques.
— O avião, que era uma invenção recente, foi utilizado primeiro como arma de reconhecimento e depois em ataque e bombardeios. Os dirigíveis alemães causaram estragos psicológicos terríveis. Pela primeira vez, populações longe da linha de frente podiam ser atingidas. O tanque foi outra arma revolucionária, mas sua contribuição como máquina de guerra foi mais eficiente na Segunda Guerra. Na Primeira, a finalidade básica era cruzar trincheiras — diz o historiador.
A Batalha de Somme se arrastou até novembro, já no frio, quando canhões e cavalos chegavam a atolar na lama. No fim, historiadores avaliam que a batalha acabou revelando-se irrelevante do ponto de vista estratégico, já que o avanço dos aliados não chegou a 20 quilômetros.
Ao final dos horrores vividos nas margens do Rio Somme, o Reino Unido contabilizava 400 mil homens mortos, a Alemanha, 335 mil, e a França, 200 mil, em uma das batalhas mais sangrentas daquela guerra. Atualmente, na região de Amiens, na França, há uma série de museus sobre o episódio histórico. O site historial.fr reúne informações sobre alguns dos principais locais.
Segundo confronto
Dois anos depois da Batalha de Somme, na primavera de 1918, uma segunda batalha chegou a ocorrer na região, após ofensiva alemã em de Amiens. O fim do conflito só viria em agosto do mesmo ano, após um contra-ataque fulminante dos Aliados, que contaram com apoios de pelotões convocados em colônias britânicas como Austrália e África do Sul.
A memória na ficção
O horror de quem viveu a batalha gerou reflexos até culturais. Conforme apuração da BBC, o escritor J.R.R. Tolkien lutou nas trincheiras da Batalha de Somme, e acadêmicos avaliam que a experiência ajudou a inspirar a criação da trilogia O Senhor dos Anéis.
Outra criação conhecida da ficção tem referência em Somme: no episódio 5 da terceira temporada da série Sex Education (Netflix), alunos britânicos visitam museus da Batalha de Somme e da Primeira Guerra Mundial. Uma boa parte do episódio se passa nesses locais.
Finalmente encarando Waterloo
"My, my. At Waterloo, Napoleon did surrender". Se você é fã de música pop, mais especificamente do Abba, é bem possível que essa seja a primeira frase que venha à sua cabeça quando ouve falar na Batalha de Waterloo. Mas, além da música composta pelo grupo sueco que aborda o episódio histórico, a cidade belga que deu nome ao conflito disputado em 1815 fica a cerca de 30 quilômetros de Bruxelas e virou ponto turístico importante do país para lembrar os horrores daquela luta.
São três as principais atrações disponíveis. A maior delas é o Campo de Batalha de Waterloo (waterloo1815.be). Lá, há um grande museu com uniformes e outros artigos utilizados por soldados da época e uma narrativa multissensorial, incluindo efeitos especiais, cenários imersivos e uma maquete gigante de 33 metros quadrados.
Também nesse local fica a Montanha do Leão, um monumento de 40 metros erguido em 1826 a pedido de William I, que queria marcar o suposto local onde seu filho mais velho foi ferido, em 18 de junho de 1815. O leão simboliza a vitória de Reino Unido e Prússia sobre o imperador Napoleão Bonaparte. Para chegar ao local, é necessário subir 226 degraus, de onde se pode ver com perfeição o campo de batalha.
Ao lado do morro, há uma imponente construção circular batizada de Panorama. É lá que está uma tela produzida em 1912 por Louis Dumoulin, pintor cuja turnê Panorama of the World foi destaque da Expo de Paris, em 1900, a mesma que apresentou a Torre Eiffel ao mundo. A pintura mostra algumas cenas daquela batalha.
"Suas dimensões excepcionais e seu sistema de som permitem uma imersão total no coração da batalha (...) Com sons de sabres, cargas de cavalaria e tiros de canhão", relata o site do museu.
As últimas testemunhas daquela guerra são as ruínas de um casarão usado na época pelos franceses e transformado em museu. Foi a partir daqui que o irmão de Napoleão lançou a ofensiva contra os rivais.
Os quartéis dos generais
Os outros dois pontos turísticos que rememoram a histórica Batalha de Waterloo têm relações com os protagonistas daquela batalha. Um deles é o Duque de Wellington, que comandou as tropas do Reino Unido.
O Museu de Wellington fica em um prédio construído em 1705. Foi nesse exato local que o duque estabeleceu seu quartel-general e passou as noites de 17 e 18 de junho de 1815.
Também foi de lá que Wellington escreveu detalhes da vitória sobre Napoleão e enviou o texto ao governo britânico. Além de armas, quartos do prédio recontam as histórias vividas por Wellington, que, curiosamente, era irlandês.
O outro ponto diz respeito ao prédio que abrigou o último quartel-general de Napoleão. O Museu Dernier QJ Napoleão tem atividades interativas e promove shows nos dias em que a batalha ocorreu (17 e 18 de junho).
O contexto da batalha
Com as Guerras Napoleônicas, no início dos anos 1800, a França se tornou grande império, e Napoleão Bonaparte, um dos homens mais poderosos da Europa. Porém, a tentativa de invadir a Rússia, em 1812, resultou em milhares de soldados franceses mortos, com frio e fome. Dois anos depois, Rússia, Reino Unido, Áustria e a então Prússia destituíram Napoleão do poder na França. Na sequência, ele foi mandado para Elba, uma pequena ilha italiana.
Em 1815, Napoleão escapou para a França e uniu forças para mais uma vez assumir o poder, no que ficou conhecido com o Governo dos Cem Dias. Em junho do mesmo ano, Reino Unido e Prússia derrotaram Napoleão na Batalha de Waterloo.
Segundo Rodrigo Trespach, só naquela batalha o líder francês perdera 27 mil de seus 72 mil soldados combatentes. Derrotado, Napoleão foi enviado para uma ilha no sul do Oceano Atlântico: Santa Helena. Poucos anos depois, teria morrido em circunstâncias não esclarecidas.
Em 2015, 200 anos após a disputa, arqueólogos anunciaram que escavariam o campo de Waterloo. O objetivo era compreender melhor como a batalha se desenrolou. A operação foi batizada de Waterloo Uncovered e segue até hoje. Acompanhe as descobertas dos pesquisadores no site waterloouncovered.com.