Por Abrão Slavutzky
Psicanalista, autor, entre outros, de “Imaginar o Amanhã” (com Edson Luiz André de Sousa, Diadorim Editora)
Charlotte Delbo vem sendo reconhecida como uma das principais escritoras sobre Auschwitz. Nos cursos atuais sobre o Holocausto, sua obra é estudada ao lado das de Imre Kertész, Primo Levi e Paul Celan. Charlotte integrou um grupo de 239 prisioneiras políticas da resistência francesa, das quais só 49 sobreviveram. Nasceu em 1913, perto de Paris, em uma família antifascista, e aderiu à Juventude Comunista aos 19 anos. Anos depois, foi convidada a ser assistente do diretor de teatro Louis Jouvet, após ele ler uma crítica escrita por ela.
Uma vida é feita de opções, e Charlotte estava numa turnê mundial de teatro, em Buenos Aires, quando ficou sabendo do assassinato de um amigo da resistência francesa. Decidiu voltar a Paris: “Não posso ficar ao abrigo enquanto meus camaradas são guilhotinados. Não ousarei mais encarar ninguém de frente”. Chegou no final de 1941 e se integrou à luta contra o nazismo. Meses depois, ela e o esposo foram presos. Após três meses de prisão, foi chamada para se despedir dele, que logo seria fuzilado. No seu livro, escreveu: “Vocês não podem compreender/ vocês que não escutaram/ bater o coração/ daquele que vai morrer”.
No livro Auschwitz e Depois, Charlotte é a voz de um coletivo de mulheres. Tardou 18 anos para editar suas primeiras publicações, pois disse que buscou fazer justiça a suas companheiras. No entanto, sofreu os traumas das amigas mortas, o cheiro de carne das câmaras de gás, a morte do esposo. Escreve um longo poema sobre ele (páginas 158-164), no qual canta seu amor e conclui: “De amor e de dor/ Meu coração estancou/ De dor e de amor/ foi secando dia a dia”.
Em uma entrevista disse que tinha dois eus: um antes de Auschwitz e outro depois. A imagem de uma cobra trocando de pele era a imagem mais apropriada para evocar a natureza de sua “nova”. Mas, ao contrário da pele de cobra, que murcha, se desintegra e desaparece, a pele de Auschwitz era agora uma parte permanente de sua memória. Conclui: “Auschwitz está tão profundamente gravado em minha memória que não consigo esquecer um momento. Então você está vivendo com Auschwitz? Não, eu moro ao lado dele. Auschwitz está lá, inalterável. Mas envolto na pele da memória, uma pele resistente”.
Convém ler Charlotte aos poucos, sem pressa, e assim conhecer o ser humano ante o abismo da morte. O leitor é desafiado em sua capacidade de escuta, de empatia, de um desprendimento deste tempo acelerado para viver um tempo ainda mais sombrio que o atual. É uma obra sobre a condição humana diante do inferno, com uma linguagem ora poética, ora descritiva. Impressiona como as mulheres revelam paciência e coragem de luta. Muitas de suas colegas morreram de doenças, pela escassa comida ou por um trabalho estafante. Prevendo o fim antecipado, lhe diziam: “Você, que sabe escrever, um dia contará tudo”.
Auschwitz e Depois integra três livros: Nenhum de Nós Voltará, Um Conhecimento Inútil e Medida dos Nossos Dias. Os dois primeiros livros são de suas memórias, o terceiro é sobre 11 mulheres e um homem que Charlotte conheceu no cativeiro. O que ocorreu com a vida de cada amiga, presa no mais conhecido dos campos nazistas, no retorno a casa, a sua cidade. Que problemas enfrentaram, que desilusões e aprendizados, como no poema entre Denise e seu esposo Jacques (páginas 401-402). Li e reli esse poema entre uma mulher corajosa, com espantosa paciência, e um homem frágil, traumatizado e sem potência para reagir (leia abaixo). Alguns anos após a guerra, Charlotte segue o caminho do escritor Jorge Semprun, que renunciou ao Partido Comunista mas se manteve ativista. Apoiou a Revolução Argelina e a luta contra a invasão norte-americana no Vietnã. Também trabalhou na Organização das Nações Unidas, em Genebra, onde morou por 12 anos. Quando voltou a Paris, tornou-se assistente do filósofo Henri Lefebvre. Morreu em decorrência de um câncer aos 71 anos.
Um dos capítulos do livro (página 174) é dedicado a Esther, que um dia procura Charlotte e diz: “Meu nome é Esther. Sei que você é uma companheira”. Esther era uma judia de Grodno, Bielorrússia, fora selecionada na estação para trabalhar no campo por ser jovem e forte. Ela perguntou à escritora de que precisava e, no outro, dia trouxe um tubo de pasta de dente e uma escova. Prometeu que traria mais, mas nunca mais apareceu. Pode ter desaparecido por ser enviada ao gás, e essa possibilidade de Esther ter desaparecido me inquietou. Recordei os desaparecidos políticos na Argentina e no Brasil.
Trecho: "No início, queríamos cantar"
Numa manhã de janeiro de 1943, nós chegamos.
Os vagões tinham sido abertos à beira de uma planície gelada. Era um lugar de antes da geografia. Onde estávamos? Ficaríamos sabendo mais tarde, pelo menos dois meses depois; nós, que dois meses depois ainda estávamos vivas – que o lugar se chamava Auschwitz. Não lhe poderíamos dar nome. No inicio, queríamos cantar. Vocês não podem imaginar como eram dilacerantes as vozes que se quebravam, veladas pelos pântanos e pela fraqueza, repetindo palavras que já não despertavam nenhuma imagem. Os mortos não cantam.
(...) Mas, assim que ressuscitam, eles fazem teatro.
É o caso de um grupo que sobreviveu a seis meses de campo da morte e foi enviado a uma certa distância de lá, naquele comando privilegiado. Havia colchões de palha para dormir, água para se lavar. (...) Após algum tempo, pensávamos em teatro. Claudette resolve reescrever O Doente Imaginário, de memória. Terminado o primeiro ato, começam os ensaios. Escrevo isso como se tivesse sido simples. Por mais que se tenha uma peça na cabeça, ver e ouvir seus personagens é tarefa difícil para quem se recupera de tifo e está constantemente tomada pela fome.
(...) É magnífico porque cada uma delas, com humildade, interpreta a peça sem pensar em se destacar em seu papel. Milagre dos atores sem vaidade. Milagre do público que de repente reencontra a infância e a pureza, que ressuscita o imaginário. É magnífico porque, durante duas horas, sem que as chaminés tenham deixado de exalar sua fumaça de carne humana, durante duas horas, nós acreditamos naquilo. Acreditamos naquilo mais que em nossa única crença de então, a liberdade, pela qual teríamos de lutar por mais 500 dias.
Trecho: "Eu dizia..." (Depoimento de sobrevivente publicado em “Auschwitz e Depois”)
Para mim foi tão difícil trazer Jacques de volta à praia
fiz tanto esforço para trazer Jacques de volta para que ele vivesse
que não tive tempo de pensar em mim.
Sua casa
seu pai sua mãe
seu irmão fuzilado
foi duro seu retorno
os companheiros de olhar frio os companheiros
virando as costas
os companheiros que não o conheciam mais
era tudo que ele perdia
era toda sua vida perdida.
Eu pensava hoje preciso ser tudo para ele
tudo não é muito não é nada
não é nada e jamais serei tudo para ele eu não conto
só conto se lhe devolver a coragem de viver.
Eu pensava que não se devem fazer contas
eu lhe dizia Jacques
conte só com sua coragem
é preciso enfrentar
Jacques me dizia Denise
o que se pode contra a suspeita
eu dizia Jacques
suspeita não é traição
ele dizia Denise
a traição teria provas a traição teria seus motivos
contra a suspeita nada se pode
eu dizia Jacques
é preciso enfrentar
ele dizia Denise
para enfrentar é preciso levantar a cabeça e
não consigo
eu vi a morte
não consigo olhar a suspeita nos olhos dos
companheiros
Eu dizia Jacques
morrer seria covardia
Ele dizia Denise
melhor morrer que não olhar de frente
Eu dizia
Jacques
Jacques é preciso resistir
E toda manhã ele dizia
Denise
humildemente como pedindo permissão
E toda manhã
Eu dizia Não Jacques
Não Jacques você não deve
é preciso aguentar
é preciso aguentar o tempo necessário
Fiz tanto esforço para devolver-lhe a vontade
de viver
que pensar em mim
todos aqueles anos...