Os bombardeios e ofensivas militares da Rússia em direção à capital da Ucrânia, Kiev, se intensificaram nesta terça-feira (1º). Segundo os números oficiais, mais de cem civis ucranianos já morreram nos conflitos. A Rússia, porém, diz que está mirando apenas em militares e acusa Kiev de usar os civis como escudo, apesar de diversos vídeos mostrarem mísseis atingindo edifícios não-militares.
Os números de civis mortos nos últimos seis dias desde a invasão da Rússia não são totalmente claros. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ao menos 136 civis morreram, incluindo 136 crianças, até a manhã desta terça. O governo ucraniano, porém, informa uma cifra muito maior: 352 civis ucranianos, incluindo 14 crianças, e mais de 2 mil feridos.
— O número real provavelmente será muito maior — disse Liz Throssell, porta-voz do escritório de direitos humanos da ONU.
Pelos números da organização, já passam de 400 as pessoas feridas nos combates, sendo mais da metade delas nas províncias separatistas de Donetsk e Luhansk.
Segundo Liz, conforme forem mexendo nos escombros dos edifícios atingidos, mais vítimas ainda devem ser encontradas:
— A maioria das vítimas foi morta pelo uso de armas explosivas com ampla área de impacto. Isso inclui bombardeios de artilharia pesada e vários sistemas de foguetes, bem como ataques aéreos.
Nesta terça-feira, as tropas de Moscou bombardearam o centro de Kharkiv, uma cidade de 1,4 milhão de habitantes, próxima da fronteira com a Rússia. O governador regional Oleg Sinegubov informou que os projéteis atingiram a sede da administração e acusou o exército russo de usar "armas pesadas contra a população civil".
O serviço ucraniano de emergência afirmou que pelo menos 10 pessoas morreram nos bombardeios contra a cidade. Explosões atingiram áreas residenciais e uma maternidade foi transferida para um abrigo subterrâneo.
A Praça da Liberdade de Kharkiv, a maior praça da Ucrânia e o núcleo da vida pública da cidade, foi atingida com o que se acreditava ser um míssil, em um ataque visto por muitos ucranianos como uma evidência descarada de que a invasão russa não era apenas para atingir alvos militares.
— As pessoas ainda estão sob as ruínas. Estamos retirando corpos — disse Yevhen Vasylenko, representante do Ministério de Situações de Emergência na região de Kharkiv.
O presidente ucraniano, Volodmir Zelensky, chamou o ataque à praça principal como "terror franco e indisfarçável", culpando um míssil russo e chamando de crime de guerra.
— Isso é terrorismo de estado da Federação Russa — disse.
Zelensky ironizou a afirmação da Rússia de que está mirando apenas alvos militares:
— Onde estão as crianças, em que tipo de fábricas militares elas trabalham? Em que tanques eles estão lançando mísseis de cruzeiro?
O que começou como uma troca de acusações, em novembro do ano passado, evoluiu para uma crise internacional com mobilização de tropas e de esforços diplomáticos.
Segundo Zelensky, até segunda, a Rússia já havia atacado a Ucrânia com 56 foguetes e 113 mísseis de cruzeiro.
— Kharkiv é uma cidade pacífica, há áreas residenciais, não há instalações militares. Dezenas de testemunhas relataram que não se trata de um erro por acaso, mas de destruição deliberada de pessoas. Os russos sabiam onde estavam atirando — falou o presidente ucraniano
Ofensiva a Kiev
Enquanto isso, um enorme comboio militar russo se dirigia a Kiev e um cerco foi montando ao porto de Mariupol. A Rússia tenta tomar a capital ucraniana, mas deparou com uma forte e inesperada resistência. Em seis dias de batalha, o país ainda não conseguiu conquistar nenhuma cidade da Ucrânia. A frustração, dizem especialistas, estaria fazendo a Rússia mudar sua estratégia.
— O exército russo é principalmente um exército de artilharia, e parece que eles estão mudando para o modo de combate — disse Nick Reynolds, analista de guerra terrestre da Royal United Services Institute (Rusi) em Londres. — O fracasso dos russos em atingir seus objetivos rapidamente inflamou a resistência da Ucrânia a eles. Na verdade, o que estamos vendo agora são os militares russos mudando de marcha.
Mas além da resistência ucraniana, a dificuldade em conquistar cidades também pode ser explicado pela rendição e sabotagem de alguns soldados russos, segundo informou o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Atormentados pela baixa moral e pela escassez de combustível e alimentos, algumas tropas se renderam em massa ou sabotaram seus próprios veículos para evitar combates, disse um alto-funcionário do Pentágono.
Durante a noite de segunda, imagens de satélite da empresa americana Maxar capturaram uma impressionante coluna de mais de 60 quilômetros de veículos e artilharia se movendo na direção de Kiev. Na terça, a Rússia afirmou que atacaria as infraestruturas dos serviços de segurança ucranianos em Kiev e pediu a retirada dos civis que vivem perto destas unidades.
— Para deter os ataques virtuais contra a Rússia serão realizados ataques com armas de alta precisão contra as infraestruturas tecnológicas do SBU (serviço de segurança) e o centro principal da Unidade de Operações Psicológicas em Kiev — afirmou o porta-voz do ministério russo da Defesa, Igor Konashenkov. — Pedimos aos habitantes de Kiev que moram perto dos centros de retransmissão que abandonem suas residências — acrescentou.
Pouco depois do anúncio, um projétil atingiu a principal torre de rádio e televisão em Kiev, deixando os serviços de televisão fora do ar. Vídeos capturaram pelo menos mais duas explosões na área próxima à torre. Ao menos 5 pessoas teriam morrido no ataque.
O ministro da da Defesa russo, Serguei Shoigu, disse que o país continuará com a ofensiva até alcançar seus objetivos. A Rússia busca a "desmilitarização" e a "desnazificação" da Ucrânia, assim como proteger a Rússia da "ameaça militar criada pelos países ocidentais", afirmou o ministro.
Shoigu negou que as tropas russas tenham como alvos infraestruturas civis ou residenciais. Ele repetiu o discurso das autoridades de Moscou de que as forças ucranianas utilizam os civis como escudos.
— Lança-foguetes múltiplos e morteiros de grande calibre estão instalados nos pátios dos imóveis próximos de escolas e jardins de infância — afirmou Shoigu. Vladimir Putin fez as mesmas acusações, o que alimentou o temor de intensificação dos ataques em áreas urbanas.
Isolamento russo
Conforme a Rússia fecha um cerco a Kiev, as potências ocidentais intensificaram as sanções ao país. A suspensão de bancos russos do Swift, ainda que não seja o país como um todo, e o congelamento de ativos do Banco Central russo afetaram brutalmente a economia do país na segunda-feira.
Ainda assim, a Rússia respondeu que as medidas não afetarão seus objetivos.
— Os EUA são fãs de sanções, e a adesão a essa prática se espalhou pela Europa. Eles provavelmente acreditam que podem nos persuadir a mudar nossa posição por meio de sanções. Evidentemente, isso é impossível — disse Peskov a repórteres.
A Rússia tem ficado cada vez mais isolada no cenário econômico e diplomático. Em discurso na ONU, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, foi boicotado por colegas. Diversos embaixadores, ministros e diplomatas se retiraram da sala em forma de protesto no momento em que o chanceler se dirigia aos membros presentes no encontro.
Desde que pagou um alto preço pela anexação da do território ucraniano em 2014, a Rússia tentou tornar sua economia à prova de sanções e isolamento.
Em discurso por videoconferência no Parlamento Europeu, o presidente Zelenski lançou um apelo dramático à União Europeia (UE), pedindo que os líderes provem que estão com os ucranianos. Ele foi aplaudido de pé após o discurso.
— A Europa será mais forte com a Ucrânia nela. Sem vocês, a Ucrânia estará sozinha. Provamos nossa força. Por isso, provem que estão do nosso lado, provem que não vão nos abandonar — declarou.
Além das centenas de mortos, a ofensiva russa já provocou um êxodo de cidadãos saindo da Ucrânia. A ONU já calcula que mais de 660.000 pessoas fugindo, sendo mais de 100.000 em apenas um dia. A situação "parece a caminho de virar a maior crise de refugiados da Europa neste século", afirmou a porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Na fronteira húngara de Tiszabecs, uma mãe embalava um bebê em seus braços após uma viagem de quatro dias de Kiev.
— Vi guerra, vi foguetes — disse seu filho mais velho, Ivan, 15 anos, que parecia exausto e pálido após a viagem (Seu pai tinha ficado para trás para lutar).
Países vizinhos, em especial a Polônia, se preparam para um fluxo intenso de imigrantes. Em Palanca, Moldávia, cerca de duas horas a oeste de Odessa, na costa do Mar Negro, um campo de refugiados com 30 barracas foi construído para ajudar os ucranianos que chegam. Lá, eles podem se manter aquecidos e se organizar antes de seguirem para os ônibus ou serem apanhados por amigos ou parentes.
Uma próxima rodada de negociações russo-ucranianas está programada para ocorrer nesta quarta-feira (2), informou a agência de notícias russa Tass, citando uma autoridade russa. A última conversa ocorreu na segunda-feira (28), em Belarus, e foi encerrada sem acordos.
(Com agências internacionais)