A França cancelou nesta sexta-feira (26) a participação do Reino Unido em uma reunião prevista para domingo com o objetivo de abordar a crise migratória no Canal da Mancha, onde 27 migrantes morreram esta semana, o que complica ainda mais a já deteriorada relação entre os dois países desde o Brexit.
Paris justificou a decisão por considerar "pobre em conteúdo e totalmente inapropriada na forma" a carta do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, ao presidente francês, Emmanuel Macron, com o pedido para readmitir os migrantes que chegam a suas costas.
Em uma carta divulgada nas redes sociais, Johnson pede a Macron "um acordo bilateral de readmissão (...) de todos os migrantes em situação ilegal que cruzam (o Canal da Mancha)", indicando que a União Europeia (UE) tem pactos similares com Rússia e Belarus.
"Esta medida teria um efeito imediato e reduziria consideravelmente, e inclusive deteria, as travessias, salvando vidas, ao quebrar o modelo econômico das máfias", completou o chefe de Governo conservador.
O ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, criticou o conteúdo da carta e sua divulgação, o que o levou a cancelar a participação de sua colega britânica, Priti Patel, em uma reunião no domingo em Calais (norte) com outros países.
"Não nos comunicamos entre líderes sobre estes temas por meio de tuítes ou cartas que tornamos públicas", afirmou em Roma o presidente francês, que considerou "pouco sérios" os métodos de Johnson.
O objetivo do encontro, que está confirmado com autoridades da França, Bélgica, Holanda, Alemanha e da Comissão Europeia, é "reforçar a cooperação policial, judicial e humanitária, assim como lutar de maneira mais eficiente contra as máfias".
O governo britânico pediu que Paris retome o convite a Patel. "Nenhuma nação pode enfrentar isto sozinha. Espero que os franceses reconsiderem a decisão", afirmou o ministro dos Transportes, Grant Shapps, à BBC.
Com o aumento dos controles nos portos e no acesso ao túnel sob o Canal da Mancha, os migrantes optaram pelo uso de embarcações para tentar alcançar as costas do Reino Unido, um fenômeno que aumentou a partir de 2018.
Do início do ano até 20 de novembro, 31.500 tentaram a travessia. A tendência não diminuiu apesar da queda das temperaturas e na quarta-feira 27 migrantes morreram na tentativa de chegar ao Reino Unido, a maior tragédia desde 2018.
Politicamente sensível
Desde a crise dos migrantes de meados da década passada, a questão de sua recepção é politicamente sensível na Europa, especialmente agora na fronteira da UE com Belarus, no Mediterrâneo e no Canal da Mancha.
A vitória do Brexit no Reino Unido no referendo de 2016 foi conquistada em grande parte graças ao discurso que defendia a recuperação do controle sobre a migração e, com a chegada ao poder de Johnson em 2019, Londres endureceu a política migratória.
O objetivo do Reino Unido, que já acusou a França de não fazer o suficiente, é que os migrantes permaneçam no continente, o que levou o país a propor novamente patrulhas conjuntas no litoral francês, algo que Paris já rejeitou por questões de soberania.
Macron, que enfrentará uma eleição presidencial em abril de 2022 com a política migratória como um dos principais temas de campanha, pediu na quinta-feira a Johnson para "não instrumentalizar" as mortes recentes com fins políticos.
O governo francês também está no alvo dos grupos de ajuda aos migrantes e dos direitos humanos por sua política de destruir os acampamentos destes no norte do país.
Esta questão não é o único foco de tensão entre França (ou UE) e Reino Unido desde a redução da integração econômica e comercial, definida pela saída dos britânicos do bloco europeu.
As condições de aceso de barcos pesqueiros franceses às águas britânicas, onde atuavam com liberdade antes do Brexit, representam outra divergência, o que levou Paris a ameaçar adotar medidas de represália caso Londres não conceda mais licenças para seus barcos.
Para aumentar a pressão, os pescadores franceses iniciaram nesta sexta-feira uma ofensiva para bloquear o acesso de barcos ingleses ao porto de Saint-Malo (noroeste) e também pretendem limitar o acesso de mercadorias ao túnel sob o Canal da Mancha.