O gaúcho Cleiton Schenkel vê os jogos do Grêmio, em geral pela internet, sentado na sala de sua casa na região mais explosiva do planeta. Há um ano e cinco meses, ele, a mulher e o filho pequeno são a única família brasileira na Coreia do Norte. Fora eles, só há mais uma brasileira: a mulher do embaixador da Palestina, que nasceu no Brasil, mas saiu do país ainda criança. Schenkel é o único integrante do corpo diplomático brasileiro no país comandado pelo ditador Kim Jong-un, que recentemente realizou testes nucleares e, volta e meia, ameaça a Coreia do Sul e o Japão com disparo de mísseis. Há 11 anos no Itamaraty, com passagens por Harare (Zimbábue) e Genebra (Suíça), Schenkel comanda uma equipe de seis funcionários locais, que trabalham no térreo da casa em que ele vive com a família. Nesta entrevista, ele descreve a rotina do país mais fechado do mundo.
O senhor percebe diferença entre as informações sobre a Coreia do Norte da imprensa local e as que recebe sobre o país na mídia internacional?
Em grande medida, sim, sobretudo quando se trata das relações externas do país. As informações divulgadas no Exterior diferem tanto das que circulam no meio diplomático local como das veiculadas pela mídia norte-coreana. No primeiro caso, a principal diferença é que os estrangeiros que acompanham o assunto por aqui tendem a ser mais cautelosos sobre o nível das hostilidades, ao passo que as notícias de fora geralmente passam a ideia de que a eclosão de um conflito seria iminente. Já os meios de comunicação locais reproduzem basicamente a posição do governo, com ênfase nas justificativas para o programa nuclear do país.
O senhor já comentou que não sente medo de viver na Coreia do Norte, mas uma "apreensão". Como é esse sentimento?
Sempre citei essa expressão como um sentimento que não seria só meu, mas compartilhado pela quase totalidade dos diplomatas e membros de organizações internacionais com representação aqui. Somos uma comunidade diplomática pequena, com bastante interação, precisamente por conta dessa situação delicada do país. De maneira geral, não se observam sinais de medo, que provavelmente se refletiriam na saída de colegas ou de seus familiares, o que não tem ocorrido. A apreensão, por outro lado, seria mais uma mudança de atitude, principalmente durante os picos de tensão, com um sentido maior de alerta para a possibilidade de mudança repentina no quadro. Nesses momentos, sempre se intensificam os contatos entre estrangeiros, e o clima de apreensão fica bem claro.
Os norte-coreanos também sentem essa apreensão? Eles têm noção de que podem ser atacados pelos EUA ou ignoram as ameaças?
É difícil dizer se os locais sentem ou não porque temos pouquíssimo contato com eles, exceto com os funcionários da embaixada, e ainda assim restrito às atividades do posto. Até o quanto se pode observar nas ruas e pelas reações dos funcionários, a vida deles segue normalmente mesmo nos momentos mais tensos. Para entender essa atitude, a gente tem de levar em conta que esses atritos não são novidade para eles. Tecnicamente, o país está em guerra há mais de meio século, já que não houve acordo de paz para terminar a Guerra da Coreia (1950-1953), vigorando apenas um armistício. Então, ainda que a tensão esteja em um nível bastante alto neste momento, eles parecem um pouco acostumados às trocas de agressões.
Fala-se que a população ignora a ditadura a que está submetida. Qual é a real noção que os norte-coreanos têm do que está acontecendo? Sentem orgulho do governo? Há uma união contra a ameaça externa?
A gente observa um forte conteúdo nacionalista nas manifestações dos locais. Este é um país com histórico recente de dominação externa, e esse sentimento parece ser bastante instigado pelo governo, sobretudo para obter apoio ao programa nuclear. Depois da detonação da última bomba, por exemplo, os cientistas envolvidos no projeto desfilaram pela cidade, com uma multidão acenando ao longo do trajeto. O contato superficial que temos com os norte-coreanos não permite que a gente saiba, a fundo, como é sua percepção sobre o que está acontecendo. Com base na forma como se comportam no dia a dia, observa-se uma relativa tranquilidade, certamente reflexo da confiança que eles têm na mensagem que é sempre transmitida pelo governo, de que o país está preparado para qualquer contingência.
O que o senhor imagina que vai acontecer? Como será a Coreia do Norte daqui a cinco anos?
São perguntas muito difíceis. Acho complicado fazer um exercício de futurologia, porque especialistas que acompanham o país há muitos anos já previram diversas vezes que haveria grandes mudanças, tanto no regime quanto na economia, e nenhuma acabou acontecendo. O sistema norte-coreano sobreviveu, mesmo depois que muitos outros, principalmente no Leste Europeu, caíram logo depois da dissolução da União Soviética. Na economia, da mesma forma, muitos achavam que o país seguiria o modelo de abertura chinês, mas as poucas mudanças que ocorreram foram pontuais e controladas pelo governo. Sobre as possibilidades de uma ação militar dos Estados Unidos, dá para ser um pouco mais específico. Sem dúvida, é possível que isso ocorra, afinal de contas, o presidente Donald Trump deixou claro que essa opção está "sobre a mesa". Acho que as chances de que as partes encontrem alternativa que evite o conflito, porém, são grandes, sobretudo porque as consequências de uma guerra seriam devastadoras. Uma estimativa recente do Pentágono fala de 20 mil mortes diárias, principalmente por causa da proximidade entre Seul e a fronteira entre os países. E existem cenários bem mais pessimistas para um eventual conflito, tornando ainda mais necessário encontrar uma solução diplomática para o problema.
As consequências de uma guerra seriam devastadoras. Uma estimativa recente do Pentágono fala de 20 mil mortes diárias, principalmente por causa da proximidade entre Seul e a fronteira entre os países. E existem cenários bem mais pessimistas para um eventual conflito, tornando ainda mais necessário encontrar uma solução diplomática para o problema.
CLEITON SCHENKEL
Diplomata
No passado, houve maior aproximação entre as duas Coreias, inclusive com visitas entre famílias dos dois lados. Eles têm algum tipo de contato ou as relações estão completamente cortadas?
O presidente que tomou posse neste ano na Coreia do Sul, Moon Jae-in, era o chefe de gabinete de um dos governantes que implantaram uma política de aproximação com o vizinho do norte, chamada "Sunshine Policy" e que vigorou por uma década até 2008. Ainda que o panorama atual seja diferente, ele se elegeu com uma plataforma que emulava essas políticas, com foco no engajamento entre os dois países. Entre as suas propostas, está exatamente retomar os encontros entre as famílias separadas pela guerra, entre outras ações de cooperação. Até agora, porém, não foi possível realizar nenhuma dessas atividades, e os países seguem sem contato direto.
As Olimpíadas de Inverno na Coreia do Sul, em fevereiro, serão uma oportunidade de a coreia do norte se mostrar ao mundo de outra forma que não como um inimigo do ocidente? Pode servir para acalmar ânimos belicistas?
Uma equipe de patinação artística da RPDC (tecnicamente, o nome da Coreia do Norte) qualificou-se para os Jogos, mas até agora o governo não deu resposta se os atletas vão mesmo participar do evento. Os organizadores dizem esperar que isso ocorra, sobretudo porque ajudaria a dar sinais positivos sobre a segurança da competição.
Como estão as relações comerciais do Brasil com a Coreia do Norte?
As relações comerciais entre os países são muito modestas, e em trajetória descendente nos últimos anos. Em 2016, o intercâmbio foi de pouco mais de US$ 10 milhões, o que é muito pouco em comparação com os volumes comercializados pelo Brasil. E os dados parciais desse ano indicam redução ainda maior. Possivelmente, as sanções que vêm sendo aplicadas contra a Coreia do Norte há mais de uma década contribuam para esse resultado. Cada nova resolução amplia as restrições, e sua aplicação pelos membros da ONU acaba impactando no comércio bilateral.
Há algum tipo de turismo na Coreia do Norte? Os turistas brasileiros que visitam Pyongyang podem andar livremente pela cidade ou são acompanhados por um funcionário do governo?
Existem brasileiros, em número relativamente pequeno, que vêm de vez em quando em pacotes ao país. Há pouco tempo, consultamos informalmente a autoridade de turismo, e eles disseram que, de acordo com os dados disponíveis, vieram entre 60 e 70 brasileiros nos últimos dois anos. É apenas uma estimativa mas, como todos os turistas estrangeiros têm de se registrar junto a esse órgão, eles são de fato os mais indicados para chegar a esse número. Qualquer estrangeiro que venha em turismo só pode se deslocar aos lugares designados e sempre na companhia de um guia local, funcionário do governo.
O senhor poderia cruzar a fronteira para o outro lado, a Coreia do Sul, se quisesse?
Em todas as manifestações dos norte-coreanos, fica claro que o inimigo ostensivo do país são os EUA. O governo critica fortemente as autoridades sul-coreanas, mas de uma forma diferente, sempre pelo que consideram uma atitude subserviente aos EUA. Houve vezes inclusive em que fizeram referência ao povo de lá como os "irmãos do sul". Não há contato direto entre os territórios. Os países são separados por uma faixa do território chamada "zona desmilitarizada", o que é uma ironia porque é uma das áreas com maior concentração de militares no mundo. Para ir da parte norte-coreana dessa faixa até Seul, a cerca de 50 quilômetros, tem de voltar e pegar dois voos, porque tampouco existem voos diretos.
O senhor já viu Kim Jong-un pessoalmente? Como foi?
Só o vi em eventos de grande porte para os quais o corpo diplomático foi convidado, como um desfile militar ou a celebração de uma data importante. Nessas ocasiões, a segurança é sempre impressionante. Os colegas de outros países que estão aqui há mais tempo dizem que ele é bem mais reservado do que o pai quanto à participação em eventos com estrangeiros.
Como é o seu dia de trabalho?
O trabalho na embaixada segue o padrão de todos os demais postos do Brasil, principalmente com atividades de representação, eventual apoio a brasileiros e acompanhamento dos temas políticos locais. No caso da RPDC, porém, a situação por que passa o país acaba, claro, fazendo com que esse último aspecto seja o mais relevante. Somos o único país das Américas com representação nas duas coreias, e isso permite ao Brasil ter uma visão própria sobre a questão na península.
O senhor tem acesso à Netflix? Percebe alguma restrição de acesso quando busca palavras no Google? Lembro que, uma vez em que estive no Vietnã, eu escrevia palavras como "democracia" e não aparecia no Google.
Não, a Netflix não opera neste país. Sobre a internet, porém, para os estrangeiros, há pouca restrição no acesso a ferramentas pela rede, sendo possível usar aplicativos e sites, com poucas exceções de endereços cujo acesso é bloqueado ou restrito, e o Google não é um deles.
É o local mais sensível em que o senhor já esteve?
Em função da seriedade da atual situação, principalmente com a recente escalada retórica entre os mandatários de EUA e Coreia do Norte, possivelmente esse seja mesmo o local mais sensível. Mas outros postos também têm seus próprios desafios, e seria difícil afirmar qual seria o maior. Sobre o futuro, temos no Itamaraty mecanismos conjuntos para a remoção dos servidores entre os postos e Brasília, e não é possível saber com antecedência qual será o próximo destino.
O senhor e sua família ficam restritos ao bairro diplomático ou é possível passear por outros bairros "comuns"?
Dentro da cidade, podemos circular livremente, com poucos locais em que o acesso fica condicionado à autorização prévia e ao acompanhamento de um guia norte-coreano. Acho que a principal diferença, nesses casos, é que é impossível passar despercebido, já que fisicamente, e até pelas roupas que vestimos, fica claro que somos estrangeiros. Mas, na maior parte do tempo, em vista das peculiaridades do país e por conveniência, acabamos circulando mesmo dentro do bairro diplomático.
O que pensou quando lhe propuseram o posto?
Estou há quase um ano e meio aqui. Antes, estava em Genebra, na missão do Brasil junto à Organicação Mundial do Comércio (OMC) e outras organizações econômicas. A designação para vir a Pyongyang representou, sem dúvida, uma mudança significativa não só de local, mas também de área de trabalho. Mas isso é normal na vida do diplomata e sempre contribui para nosso crescimento profissional.
Vocês veem TV? Conseguem ver alguma programação brasileira?
Não pega programação brasileira. Temos duas antenas parabólicas. Pega meia dúzia de canais, Al-Jazeera, France 24. A CNN não pega. Se a gente redirecionasse uma das antenas, pegaria a BBC, mas perderia todas as demais emissoras. Da programação brasileira, nada. Eu me mantenho a par das notícias pelo YouTube, normalmente a gente janta e coloca no YouTube o jornal do dia anterior.
É possível manter, num país isolado como este, hábitos que teria no Brasil, como comida e futebol?
Na medida do possível, tentamos trazer um pouco do Brasil para todos os lugares aonde vamos. Eu trouxe um estoque imenso de erva-mate, por exemplo, e por isso sigo tomando meu chimarrão quase todos os dias. Outras coisas, como a culinária brasileira, são um pouco mais difíceis de reproduzir, mas tentamos comer o máximo possível o que comeríamos por aí. No restante, um dos desafios é acompanhar o futebol brasileiro com uma diferença tão grande de fuso, mas ainda assim faço o máximo para continuar acompanhando o meu time, o Grêmio.
Saiba mais sobre a Coreia do Norte
O Brasil é o único país da América com embaixada nas Coreias do Norte e do Sul, dois países que estão tecnicamente em guerra desde 1953. Das 193 nações integrantes da Assembleia Geral da ONU, apenas 24 têm embaixadas em Pyongyang. Além disso, o Brasil também é um dos poucos países que ainda negociam com a Coreia do Norte. No ano passado, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), o fluxo comercial foi de US$ 10,75 milhões (cerca de R$ 34 milhões), bem aquém do auge de 2008, quando somou US$ 375,2 milhões.
5 notas sobre o país
1. É proibido ter o mesmo nome do presidente. Desde que Kim Jong-un assumiu, em 2011, após a morte do pai, Kim Jong-il, todo cidadão homônimo teve de mudar de nome "voluntariamente".
2. Oito de julho é guardado como um dia de luto: é quando é lembrada a morte de Kim Il-sung, o líder supremo que fundou o atual regime norte-coreano, em 1994. Nesse dia, é proibido levantar a voz, beber álcool, dançar e inclusive sorrir. O dia 15 de abril, aniversário de Kim il-sung, marca a passagem dos anos. Por isso, os norte-coreanos não estão em 2017, e sim em 106.
3. Quem tem algum parente criminoso também é criminoso. Segundo a lei norte-coreana, familiares de acusados por um crime são automaticamente considerados corresponsáveis.
4. As eleições presidenciais são a cada cinco anos. Só há um nome na cédula, o de Kim Jong-un, no caso. Nas últimas eleições no país, em março, ele obteve todos os votos válidos (sem abstenção).
5. Mulheres são proibidas de mostrar o umbigo no país. Atividades consideradas ilegais são punidas com prisão e pena de morte. Muitas das execuções são em praça pública. Campos de detenção, muitas vezes com trabalhos forçados, são secretos.
5 filmes ou livros sobre o país
Under the Sun
Disponível na Netflix, este documentário de Vitaly Mansky é fruto da insistência do diretor russo, que conseguiu autorização para filmar apenas o que as autoridades norte-coreanas permitissem de seu país. Enganou-as, registrando imagens dessas autoridades controlando o comportamento das pessoas. O lançamento do longa, em 2016, provocou problemas diplomáticos entre a Coreia e a Rússia.
Fuga do Campo 14
A edição brasileira deste best-seller de Blane Harden coincide com o lançamento do documentário baseado no livro. Trata-se da história de Shin Dong-hyuk, que nasceu num complexo destinado a presos políticos da Coreia do Norte. Aos 13 anos, ele viu a execução da mãe e do irmão por tentarem fugir.
The Propaganda Game
Também disponível na Netflix, este documentário de Alvaro Longoria lançado em 2015 exalta as autoridades norte-coreanas. O diretor, espanhol, é conterrâneo do único estrangeiro a integrar o governo de Kim Jon-un. Longoria seguiu as exigências de “só falar bem” do regime, mas a propaganda é tão artificial que tem efeito contrário no espectador.
Dentro do Segredo
Este livro do escritor português José Luís Peixoto narra sua viagem pela Coreia do Norte desde que, para entrar no país, teve de deixar o celular no aeroporto e submeter-se a ter todos os seus passos controlados. Sem poder conversar com ninguém sem a mediação de um vigia do governo, o autor identificou o estado de isolamento total do país.
Meus Irmãos e Irmãs do Norte
Filme alemão dirigido pela sul-coreana Cho Sung-hyung,que entrou no país com passaporte alemão e conseguiu visitar fábricas, escolas e locais de lazer sem a supervisão de autoridades locais. O longa foi lançado em 2016 na Europa e, no Brasil, ganhou sessões apenas na Mostra de São Paulo. Ainda não foi lançado no circuito comercial.