O mundo se sobressalta temendo uma guerra, e, se depender das conclusões de um psiquiatra que recentemente conheceu os meandros da Coreia do Norte, tem lá suas razões. Se de um lado os EUA advertiram que todas as opções estão na mesa depois que Pyongyang lançou um míssil sobre o Japão, de outro o psicanalista Nelson Asnis alerta que "os norte-coreanos preparam-se para uma guerra desde a infância, convictos do acerto de sua causa e profundamente devotados aos seus líderes Kim", família no poder há quase 70 anos.
Médico formado na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre com especialização em psiquiatria na Fundação Mário Martins e professor da PUCRS, Asnis tem doutorado em psicologia pela PUC e pós-doutorado em história pela UFRGS. Com essa capacitação, fez um périplo de quatro dias por Pyongyang para conhecer a alma de um país tão fechado. Foi um entre cinco brasileiros que viajam, em média, ao ano, ao país governado com mão de ferro por Kim Jong-un.
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No retorno, Asnis escreveu o livro Um psiquiatra na Coreia do Norte (Editora Buqui, 112 páginas), lançado na semana passada. Na página 93, responde à pergunta que todos estão fazendo: "Podemos ter aí o estopim de uma terceira guerra mundial?", indaga ele próprio, para responder: "Pelo que pude depreender de minhas viagens a Seul, Pequim e Pyongyang, não tenho dúvidas de que sim." Em um panorama mais amplo, Asnis explica, falando nas "pulsões da morte (...) por meio da destrutividade dirigida aos outros", logo em seguida, na página 95:
"Quando um líder como (o presidente americano) Donald Trump, com traços impulsivos, narcisistas e belicosos de personalidade assume o poder, seus governados, que legitimamente o escolheram, passam a ser cúmplices de seus atos. Uma vez eleito, ele se julga apto a colocar em prática o que prometera. Do outro lado, encontra os norte-coreanos, profundamente traumatizados por anos de dominação e humilhação e educados para a guerra, representados por sua liderança máxima, os presidentes Kim".
Asnis conta no livro toda a preparação prática e emocional que teve de desencadear para a viagem. No ano anterior, estivera na Coreia do Sul. Já esteve em 70 países, no Oriente e no Ocidente, e pontua a diferença entre turista e viajante, colocando-se no segundo grupo. Esteve em Pyongyang certo de que teria de usar sua formação para contornar o discurso oficial. Conta que teve de "aguçar outros sentidos além da audição", para ouvir além do que diziam. Entre diversas exigências que teve de obedecer para poder entrar, estavam a de não ser jornalista e de, na volta, não escrever sobre o país.
Mas o principal entrave nos preparativos se deu em algo que está alheio à logística. Ao ouvir no noticiário da TV informações sobre a tensão entre Coreia do Norte e EUA, com Japão, Coreia do Sul, China e Rússia no meio de tudo, sua filha, de 10 anos, pediu, aos prantos, que ele não fosse. Asnis tentou acalmá-la, dizendo que estava tomando todos os cuidados necessários. A menina respondeu:
– O problema não é tu. São eles!
Asnis foi. Teve de entregar seu passaporte às autoridades assim que chegou. Ele seria devolvido dependendo de como se comportasse. Abriu mão de usar o celular. Dois guias o acompanharam durante toda a incursão. Separavam-se dele apenas quando ia para o quarto do hotel.
Comparação entre duas realidades
Os sentidos treinados do psicanalista até viram um país onde a violência urbana é menor que a brasileira. Mas entraram em contato com um universo de pessoas cooptadas ideologicamente pelo governo totalitário. Na página 60, um trecho é revelador: "Outdoors com as imagens dos presidentes e frases como ‘Se o partido decide, nós fazemos’ ou ‘Vamos proteger Kim Jong-il (pai do atual ditador, morto em 2011) com nossas vidas’ são vistos espalhados pelo país."
Em determinado momento, a comparação entre Seul e Pyongyang choca por algumas constatações. Enquanto Seul é polo exportador de celulares, Pyongyang tem as comunicações mais rudimentares. Outro exemplo, talvez o mais devastador: os adolescentes sul-coreanos são, em média, 12 centímetros mais altos do que os norte-coreanos.
E fica mais uma dúvida: se os norte-coreanos precisam sair com lanternas à noite em razão da falta de energia elétrica, como relata Asnis, como podem ter energia para fins bélicos? Para o autor, as armas são uma prioridade do país.