O sonho de uma carreira artística, desenvolvimento de habilidades de atuação e participação em filmes virou decepção para crianças e idosos clientes de uma escola de atores de Porto Alegre. Pelo menos 70 pessoas buscam reparação na Justiça contra a escola Elite Acting – empresa com mais de uma década de existência e que agora virou alvo de uma enxurrada de processos.
O Grupo de Investigação da RBS foi procurado por ex-alunos que firmaram contratos que não teriam sido cumpridos. A reportagem conversou com 40 pessoas que se inscreveram para os chamados projetos da empresa: cursos que teriam, ao final, a produção e apresentação de monólogos, peças teatrais e filmes com estrutura profissional. Todos se sentem enganados e trazem relatos parecidos, de que tiveram as aulas, mas que as peças e produções audiovisuais contratadas nunca aconteceram ou foram feitas de maneira improvisada.
A maioria dos ex-alunos não quer se identificar, mas tomou coragem de buscar o GDI como uma forma de alerta:
— A ideia principal é que não tenha mais pessoas enganadas, porque faz anos que elas fazem isso. Tem gente que faz sacrifício, deixa de comprar alguma coisa em casa, pro filho, pra elas ficarem fazendo coisa desse jeito?
Entenda, abaixo, passo a passo da história e da apuração jornalística que começa com um telefonema de uma das pessoas que se sente lesada à redação da RBS TV, em 22 de julho de 2024.
Captação via redes sociais
São duas formas de captação de clientes pela Elite Acting, segundo os ex-alunos. Nos casos que envolvem crianças, começam com um convite, especialmente por meio de redes sociais. Pais e mães de crianças receberam mensagens que diziam que seu filho tem perfil artístico e com potencial para desenvolver uma carreira no teatro.
Um dos casos aconteceu com uma família de Sapucaia do Sul. Uma menina de 11 anos foi procurada através do perfil do Instagram da mãe. A mensagem da representante da Elite dizia que a menina era “linda, que a audição seria em um set profissional e que ela participaria de um curta metragem que teria um grande diretor”.
Parecia tão surreal, foi escolhida pra fazer um filme. Bom, os olhos da minha filha brilharam: "quero fazer, mãe"
MÃE DE UMA DAS VÍTIMAS
de Sapucaia do Sul, que prefere não se identificar
Já nos casos de idosos, a captação chegava a acontecer na rua. Uma das pessoas que foi procurada é a professora aposentada Maria Helena Carvalho Soares, de 66 anos. Ela caminhava no final de 2023 pela Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre, quando foi parada por uma mulher jovem, que disse a ela que tinha perfil para atuação e sugeriu passar por um teste. A aposentada resistiu inicialmente, nunca havia feito isso na vida, apesar de guardar reprimido o sonho da juventude de interpretar poemas no palco. Ela decidiu ir até a escola ao ouvir que recitaria obras de Cecília Meireles, de quem é aficionada, e participou da audição:
Como não demonstrar emoções se o texto era da Cecília Meireles? Fiz, passou por uma avaliação, vieram dizer que era maravilhoso o meu teste, só que eu não tinha demonstrado um sentimento, que é a raiva. E que eu tinha que trabalhar esse sentimento, tinha que fazer aulas e aí já foi me fazendo contrato
MARIA HELENA CARVALHO SOARES
professora aposentada
Pressão para fechar contrato
Os valores dos contratos são variados, mas giram entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. Boa parte das vítimas relata ter negociado o pagamento de forma parcelada em 12 vezes, valores que, mesmo após manifestarem que querem a rescisão do contrato, seguem descontados dos cartões de crédito.
No caso da mãe da menina, o fechamento do contrato aconteceu logo após o teste de elenco no centro de Porto Alegre.
A entrevistadora que fez o contato disse que como ela era desinibida ia ganhar uma bolsa e o contrato sairia mais barato
MÃE DE UMA DAS VÍTIMAS
de Sapucaia do Sul, que prefere não se identificar
Outra mãe, de Pelotas, também contatada pelo Instagram, levou o filho em outubro do ano passado até o centro de Porto Alegre para fazer a audição. A mensagem, segundo ela, dizia que o garoto, de cabelo comprido, levava jeito para ser artista e se encaixava no perfil procurado em um dos projetos da empresa. Contou que o menino se apresentou em uma sala na sede da Elite Acting em um teste.
Vinte minutos depois ela voltou e disse: ele foi aprovado, mãe. Esse guri comemorou, se abraçou no meu pescoço, se emocionou, eu me emocionei. Eu não imaginava o quanto ele tava mexido
MÃE DE UMA DAS VÍTIMAS
de Pelotas, que prefere não se identificar
A surpresa veio depois: a empresa teria dito que não tinha todo o financiamento para o dito projeto e cobrou R$ 4,5 mil da família. Assim como a outra família, também houve a alegação de que ele estava recebendo uma bolsa.
Os contratos previam que a preparação dos alunos seria em três etapas, que começariam com nove aulas, teriam ainda a criação de um portfólio com participação de monólogos e montagem teatral e, por último, a gravação de um curta metragem.
Suposto descumprimento dos contratos
Todos os alunos ouvidos disseram que receberam as aulas, mas apontam que a empresa não teria cumprido o previsto no restante do contrato, dos monólogos, peças e participação em filmes.
Segundo a mãe do menino de Pelotas, apesar de supostamente ter ouvido da empresa de que a apresentação da peça ao final do curso seria no Theatro São Pedro, aconteceu na sede da empresa, em um pequeno palco:
Os pais ficaram atônitos, incrédulos, porque não tinha figurino, eram só os pais, no máximo dois familiares por pessoa
MÃE DE UMA DAS VÍTIMAS
de Pelotas, que prefere não se identificar
Depois disso, não houve a realização do curta-metragem nem nova preparação. A mãe tentou contato com a pessoa que vendeu o contrato, com o perfil da empresa no Instagram e não conseguiu contato. A empresa teria alegado que não conseguiu responder devido a enchente.
A mãe da menina de 11 anos contou que quando terminaram as aulas a professora disse para os alunos “aguardarem em casa para as próximas etapas”. Foi no final do ano passado e, até agora, não houve novidade. Os pais se organizaram em grupos no WhatsApp para buscar reparação judicial.
O caso foi semelhante envolvendo mulheres idosas. Um grupo de 10 mulheres se reuniu e entrou com pedido de reparação por danos morais. Na ação inicial, a advogada aponta que nunca houve as apresentações acordadas no contrato, que, na verdade, eram monólogos na sala de aula, sem público, “sem figurino, sem nada”. E que o filme nunca aconteceu.
Os relatos se assemelham aos das 40 vítimas que o GDI ouviu, com relatos entre 2021 e 2024.
Mais de 70 processos em um só CNPJ
A Elite Acting está registrada como L. Medianeira Lima Da Silva – Producoes Ltda, em nome de Letícia Medianeira Lima da Silva. O GDI levantou junto ao sistema do Tribunal de Justiça do RS o número de processos que pedem reparação por danos morais por descumprimento de contrato ou propaganda enganosa. São 71 abertos e ainda ativos, ou seja, que ainda não foram arquivados ou tiveram decisão final.
Uma das advogadas que está com casos contra a Elite Acting, Sabrine Gasperin, afirma que identificou um modo de agir semelhante:
— O ponto é esse: há uma oferta muito grandiosa, com uma grande vantagem, sempre tentando um modo a induzir a pessoa a uma carreira, em que a pessoa é única, e que tem perfil para um curta metragem, um teatro… e a gente identificou que esses contratos não são cumpridos — explicou Sabrine.
O caso já foi parar na Polícia Civil, que já recebeu ao menos 20 boletins de ocorrência por estelionato. O fato está sob investigação da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre. O delegado Paulo César Jardim afirma que a apuração ainda está em fase inicial.
O Procon também já recebeu denúncias contra a empresa. São 27 expedientes abertos no último ano, segundo o órgão. Já no site Reclame Aqui, que reúne queixas de consumidores, são 56 reclamações de consumidores que se sentem lesados.
Sede da escola foi abandonada
O GDI também foi até a sede da escola, que fica no nono andar de um prédio na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre, onde os alunos tiveram as aulas. O síndico informou que a Elite Acting deixou o prédio no período da enchente e nunca mais voltou. Nem a chave deixou. Alunos revoltados com a falta de explicações estão indo frequentemente até o endereço.
Apesar de o abandono da sala ter ocorrido na enchente, desde o ano passado o dono da sala tem cobrado com ações na Justiça a falta de pagamento. Na mais recente, em julho deste ano, pediu R$ 125 mil de aluguéis atrasados, danos morais e honorários advocatícios.
Tudo que sobrou no local e que remete à Elite Acting é uma folha A3 impressa e colada com fita na porta com uma mensagem:
“Estaremos iniciando as atividades dos projetos neste mesmo endereço”.
As aulas até hoje, segundo o advogado, não voltaram.
Dona da empresa nega entrevista
A dona da Elite Acting, Letícia Medianeira Lima da Silva, combinou que daria entrevista ao GDI na sede do escritório do seu advogado. Na última quinta-feira (8), data da entrevista, ela estava no local, mas não quis gravar entrevista. Rebateu as acusações e disse não entender “a raiva” dos alunos contra a empresa.
Já o advogado, Henrique Caporal, negou as alegações de propaganda enganosa. Disse ainda que “no momento que a pessoa chega lá, são passadas todas as informações de como vai funcionar” e que a entrega “sempre é feita”. O defensor ainda afirma que a empresa se desorganizou por causa da enchente. E comparou:
— Um exemplo: tu pode comprar um blusão xis e achar que ele vai te aquecer no inverno e ele não te aquece. Daí o que tu faz? Tu pode tentar devolver o produto, ou não gostar, criar uma situação. É o que tá acontecendo aqui.
Pais de crianças relatam abalo psicológico
Duas mães de crianças que fecharam contrato com a Elite Acting e não teriam tido a peça e o filme realizados afirmam que seus filhos tiveram abalo psicológico pela frustração com o curso.
A menina de 11 anos passou a fazer acompanhamento psicológico e, segundo a mãe, “não tem vontade de fazer mais nada”. O garoto de nove anos de Pelotas também apresenta comportamentos diferentes desde então.
É devastador. Parece que não… Quem olha de longe, de fora, parece bobagem: "Ah, golpe todo dia se cai". Mas quando é com a nossa família, é conosco, tu consegue ver o tamanho da devastação que pessoas irresponsáveis, em função de dinheiro, conseguem fazer com outras
MÃE DE UMA DAS VÍTIMAS
de Pelotas, que prefere não se identificar
O que diz a defesa
"Quanto às ações judiciais, a reportagem não mostrou quantas delas resultaram em pagamento de indenização por perdas, danos, ou condenação em qualquer outra tipificação legal que seja em nome da empresa, claramente por tratarem-se apenas de ações de cancelamento de contrato, as quais estão sendo todas defendidas. Em eventuais casos de contratação e não utilização do serviço, a escola sempre restituiu o aluno conforme contrato ajustado, sendo que em alguns casos houve acordo judicial com cumprimento integral do acordo. Em relação ao TAC, a empresa na época prestou todos os esclarecimentos e ajustou o termo de conduta com o MP, não havendo qualquer ilegalidade nisto, uma vez que o ajuste previa apenas uma correção texto no contrato de prestação de serviços.
Por isto, cabe reiterar que a Escola Elite não deixará de eximir-se de suas responsabilidades e apresentará defesa em todos os processos judiciais que tiver seu nome vinculado.
A Escola reitera que sempre cumpriu com suas obrigações, visto que sempre entregou um material gratificante aos alunos que por mais de 10 anos frequentaram a Escola, sendo que a mesma continuará disponível para prestar todo e qualquer esclarecimento legal a fim de findar esse irresponsável escárnio público que vem sendo perpetrado contra a Elite."
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*Colaborou: Fernanda Axelrud