Os descontos prometidos pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Nova Hartz a pacientes do SUS encaminhados para atendimento em clínicas privadas que seriam conveniadas nem sempre se concretizaram.
Reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostrou que pacientes do SUS do município eram direcionados a prestadores de serviços de saúde para a realização de exames e consultas com especialistas, tendo a obrigatoriedade de tirar dinheiro do próprio bolso para o pagamento. A SMS de Nova Hartz fazia o encaminhamento com a emissão de guias que continham o nome da clínica a ser procurada e um carimbo autorizativo da prefeitura. Os pacientes eram informados pela SMS de que, com aquela requisição, teriam direito a desconto pelo "convênio".
Em uma situação concreta checada pela reportagem, o anunciado preço mais baixo não foi praticado. É o caso de uma mãe encaminhada pela prefeitura do município para atendimento do filho com um neurologista pediátrico na clínica Já Consultas, em Parobé.
No estabelecimento privado, ela teve de pagar R$ 220, em dinheiro, pela avaliação com o especialista. Foi emitida nota fiscal com esse valor pelo serviço prestado. Embora tenha recebido da SMS de Nova Hartz a guia com o suposto desconto, a mulher foi cobrada de acordo com o custo integral de uma consulta particular. Não houve nenhum abatimento. No site da Já Consultas, o atendimento com o neuropediatra está precificado em R$ 220. É exatamente o valor quitado pela mãe, a despeito do alegado "convênio" da prefeitura.
— Me sinto totalmente enganada hoje — diz a mulher, sob anonimato.
Em outro caso, a cobrança de um valor mais baixo para pacientes do SUS enviados pela prefeitura de Nova Hartz foi confirmada. Contatada pela reportagem, uma clínica de cardiologia de Sapiranga informou que a consulta com o especialista pelo particular sai por R$ 400. Para os pacientes que tiverem a guia da SMS de Nova Hartz, o atendimento fica R$ 250.
A cobrança de qualquer valor de pacientes do SUS, com ou sem desconto, é irregular. A prática viola os princípios da integralidade e da gratuidade do sistema. Após a publicação da reportagem, o Departamento de Auditoria do SUS (DEASUS), da Secretaria Estadual de Saúde (SES), anunciou a abertura de apuração administrativa para verificar possíveis ilegalidades. Por lei, o atendimento no SUS é inteiramente gratuito. É vedado instigar, orientar ou pressionar o usuário a aderir a meios em que ele precise fazer pagamentos.
O setor de auditoria conduz o processo investigatório e, ao final, emite uma decisão. Entre as penalidades previstas, estão advertência, multa e devolução ao paciente do valor indevidamente cobrado. Em casos mais graves ou reincidentes, pode ocorrer a suspensão de repasses de recursos do Estado e a exclusão do SUS. A auditoria apura a conduta tanto dos gestores públicos quanto das clínicas privadas.
Alternativas
Para municípios que não dispõem da rede de atenção em saúde completa, a legislação prevê alternativas para o atendimento da população de forma gratuita, por dentro do SUS. Uma possibilidade autorizada é a participação complementar. Esse mecanismo permite a contratação dos serviços de saúde da iniciativa privada, preferencialmente junto às instituições sem fins lucrativos ou filantrópicas, para garantir atendimento amplo à população. A fonte de custeio é o orçamento público, sem ônus para o cidadão.
Para atendimento com especialistas, o sistema de saúde é regionalizado. Isso significa que usuários de pequenos municípios podem ser atendidos em cidades de referência. Neste mecanismo, os gestores locais registram as necessidades dos pacientes no Sistema de Gerenciamento de Consultas (Gercon), da Secretaria Estadual de Saúde (SES).
Pelas informações anotadas na ferramenta, o Gercon atribui uma classificação de gravidade ao paciente e organiza a fila de atendimentos com especialistas, também levando em consideração o critério cronológico. O Gercon tem 71 especialidades médicas cadastradas para o atendimento da população, incluindo o neurologista. As consultas ocorrem, atualmente, em 433 instituições de saúde distribuídas pelo Estado. Em 2023, foram feitas 1,1 milhão de consultas com especialistas pela regulação estadual do Gercon, sem custos aos pacientes.
Contraponto
O que diz a prefeitura de Nova Hartz
Questionada sobre a cobrança a pacientes do SUS de valores compatíveis com os atendimentos particulares, sem a observância dos alegados descontos, a prefeitura de Nova Hartz disse que "optou por não se manifestar".
Na publicação da primeira reportagem, a SMS de Nova Hartz afirmou que parou de encaminhar usuários do SUS para clínicas privadas. O órgão disse que irá buscar novas formas de auxiliar a população. A secretaria reconheceu que os convênios com as clínicas eram informais, sem existência de contrato.
O que diz a clínica Já Consultas
Sobre a inobservância do desconto para pacientes que tinham a guia de Nova Hartz: "Todo paciente que apresenta o pedido médico tem o desconto concedido. Não temos como afirmar que o paciente apresentou ou não o pedido no momento da consulta, assim como não temos conhecimento de qual paciente se trata esta reportagem. Dessa forma, não temos como fornecer detalhes exatos. Não temos nenhum tipo de relação de convênio com prefeituras. Por políticas de responsabilidade social, oferecemos descontos para o pagamento de serviços oferecidos em nossas unidades, a pacientes advindos do SUS, por entender que podemos ser uma alternativa viável para quem não deseja esperar para ter seu diagnóstico. Não é de responsabilidade da empresa o modo como o município de Nova Hartz encaminha seus pacientes."
Sobre a relação comercial com o município de Nova Hartz: "Nunca visitamos o município e nunca houve qualquer tipo de pedido de prioridade de encaminhamento. O único contato que tivemos com o município foi através de e-mail, no qual o município solicita orçamentos dos serviços prestados pela clínica. A Já Consultas destaca que é um clínica de atendimento particular, que realiza consultas e exames com foco no atendimento a baixo custo, oferecendo serviços com valores acessíveis a população, não tendo nenhuma relação ao atendimento SUS. Nosso compromisso sempre foi e continuará sendo oferecer consultas e exames com valores acessíveis e de qualidade, proporcionando uma alternativa viável aos pacientes que desejam evitar as filas de espera do sistema público de saúde."
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