Pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) de Nova Hartz estão sendo direcionados pela prefeitura a clínicas privadas para a realização de exames e consultas com especialistas, com a obrigatoriedade de o cidadão tirar dinheiro do próprio bolso para acessar serviços e atendimentos.
A prática, flagrada pela reportagem a partir de requerimentos da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) e de depoimentos e documentos de cidadãos prejudicados, viola os princípios da universalidade, da integralidade e da gratuidade do SUS. O Ministério da Saúde e o Conselho Estadual de Saúde (CES-RS) confirmam a irregularidade das cobranças.
Nova Hartz é uma cidade de 20 mil habitantes, no Vale do Sinos, em que a privatização informal de parte do SUS é corriqueira na atenção secundária à saúde. O método é o seguinte: um cidadão busca atendimento no posto de saúde e recebe o encaminhamento do médico para um especialista ou para a realização de exame. Depois, o usuário do SUS leva o requerimento até a sede da SMS, onde recebe um carimbo de "autorização" via "convênio" da prefeitura com clínicas privadas. Na guia, costuma ser anotado o valor que o cidadão terá de pagar ao estabelecimento privado.
Foi o que aconteceu em fevereiro de 2024 com uma mulher residente em Nova Hartz. Sob anonimato, ela contou que o filho estava com as vias nasais congestionadas e sentia dores. No posto de saúde, a médica suspeitou de desvio de septo e emitiu o laudo para realização de uma tomografia dos seios da face do menino. Com o papel, a mãe foi à sede da SMS solicitar a realização de exame gratuito, como preconiza o SUS, mas foi informada de que o município dispunha somente de um convênio em que ela teria de pagar R$ 270 pela tomografia.
A guia guardada pela mãe contém as logomarcas do SUS e da prefeitura de Nova Hartz no topo, além de um carimbo e assinatura autorizativas do município informando sobre o convênio. Abaixo do cabeçalho, está registrado que a autorização de exame foi emitida "em parceria com o Hospital de Sapiranga", no "valor de R$ 270". O Hospital Sapiranga é um entidade privada, de caráter filantrópico, que atende convênios, particulares e SUS.
— Não conseguimos fazer (a tomografia) por falta de dinheiro — lamenta a mãe, que ficou sem o diagnóstico para o menino.
Também em 2024, a mesma mãe foi à rede municipal em busca de atendimento de neurologista para o filho. Encaminhada pelo médico, recebeu da SMS a informação de que a consulta teria de ser feita pelo "convênio". Desta vez, a guia autorizativa da prefeitura, contendo as marcas do SUS e do município, dizia que o encaminhamento estava sendo feito em "parceria com a Já Consultas".
Em maio, a mulher levou o filho até a unidade do Já Consultas em Parobé, onde teve de desembolsar R$ 220 pelo atendimento. Ela recebeu até nota fiscal informando ter sido realizado o pagamento.
— Eles (SMS) falaram que não tinha neuro pelo SUS. Só pelo convênio — diz a mãe, preocupada com os desembolsos que terá de fazer nas próximas consultas do filho, que precisa de tratamento contínuo.
Tabela de preços em clínicas privadas
Além de gerar custo indevido para os pacientes, a prática da prefeitura de Nova Hartz direciona os cidadãos para clínicas específicas: a autorização de exame ou consulta é emitida com o prestador de serviço médico já identificado. A SMS admitiu que não existe contrato entre a prefeitura e as clínicas. Os encaminhamentos são feitos de maneira informal.
Nos arredores da sede da SMS de Nova Hartz, em junho de 2024, uma segunda mulher concordou em prestar depoimento sobre os gastos com saúde pelo SUS. Pelo "convênio", ela teve de pagar R$ 110 para que o marido fizesse uma endoscopia em uma clínica de Sapiranga. Sob anonimato, contou ser aposentada e que o valor cobrado pelo exame pesou no seu orçamento pessoal.
Os casos das duas mulheres não são isolados e fazem parte de política pública adotada na cidade. A reportagem teve acesso a documentos internos da rede de saúde de Nova Hartz. A SMS trabalha com tabelas de preços de clínicas privadas que são cobradas de pacientes encaminhados pelo SUS. Os arquivos revelam a existência de listas de valores para exames e consultas, com "descontos" para os usuários encaminhados por Nova Hartz, em pelo menos nove estabelecimentos privados, todos na Região Metropolitana.
A reportagem identificou outras guias com o carimbo de convênio e assinatura do responsável pela prefeitura: uma delas encaminhou um cidadão para avaliação com oftalmologista por
R$ 150.
Cinco clínicas de exames e consultas, em conversas gravadas, confirmaram que a guia da prefeitura de Nova Hartz dá direito somente a um "desconto". A diferença tem de ser acertada pelo cidadão no balcão.
Até mesmo pelo exame de sangue, nos casos sem urgência e emergência, é preciso pagar parcialmente. A informação, confirmada pela prefeitura, é de que a guia autorizativa do município assegura gratuidade de sete itens a serem testados por mês e 14 por ano. Depois disso, o paciente precisa pagar do próprio bolso.
É vedada qualquer cobrança. Não há coparticipação. O SUS é início, meio e fim. Se entrou pelo SUS, seja pela atenção primária ou urgência e emergência, o paciente não pode ser cobrado.
INARA RUAS
Presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul
Somente a solicitação de exame de sangue de rotina de um idoso de mais de 80 anos continha 15 testes recomendados pelo médico. A requisição, também checada pela reportagem, recebeu o carimbo da SMS de "convênio". Isso significa que o paciente, vítima de insuficiência cardíaca, teve de pagar por oito tipos de análise sanguínea, enquanto o município custeou sete.
— É vedada qualquer cobrança. Não há coparticipação. O SUS é início, meio e fim. Se entrou pelo SUS, seja pela atenção primária ou urgência e emergência, o paciente não pode ser cobrado — afirma Inara Ruas, presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (CES-RS).
"Hipótese alguma pode haver ônus para a população"
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que o SUS é "um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação de pressão arterial, por meio da atenção primária, até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população".
A lei do SUS prevê alternativas para os municípios que não conseguem oferecer todos os serviços e especialidades. Uma possibilidade autorizada é a participação complementar. Esse mecanismo permite a contratação dos serviços de saúde da iniciativa privada, preferencialmente junto às instituições sem fins lucrativos ou filantrópicas, para garantir atendimento amplo à população. A fonte de custeio é o orçamento público.
"A gestão local pode organizar a prestação desse serviço com apoio de privados (hospitais e clínicas), desde que contratado pelo município pela inexistência na rede pública, e sem hipótese alguma ter ônus para a população", afirma o Ministério da Saúde.
Para atendimento com especialistas, o sistema de saúde é regionalizado. Isso significa que usuários de pequenos municípios podem ser atendidos em cidades de referência. Neste mecanismo, os gestores locais registram as necessidades dos pacientes no Sistema de Gerenciamento de Consultas (Gercon), da Secretaria Estadual de Saúde (SES).
Pelas informações anotadas na ferramenta, o Gercon atribui uma classificação de gravidade ao paciente e organiza a fila de atendimentos com especialistas, também levando em consideração o critério cronológico. O Gercon tem 71 especialidades médicas cadastradas para o atendimento da população, incluindo o neurologista. As consultas ocorrem, atualmente, em 433 instituições de saúde distribuídas pelo Estado. Em 2023, foram feitas 1,1 milhão de consultas com especialistas pela regulação estadual do Gercon, sem contar as quatro cidades que têm gestões próprias do sistema — Porto Alegre, Canoas, Caxias do Sul e Pelotas. Em nota, a SES informou que os atendimentos via Gercon são gratuitos e que é "infração grave a cobrança de qualquer usuário".
— Prejuízos como esse, em que o usuário teve que pagar por um serviço que deveria ser gratuito, podem ensejar o dever do poder público de ressarcir — afirma Ana Navarrete, coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar do Conselho Nacional de Saúde.
Contraponto
O secretário da Saúde de Nova Hartz, Adrião da Silva, diz que foi interrompida a prática de emitir guias de encaminhamento de pacientes do SUS para clínicas privadas em que teriam custos. Ele afirma que a paralisação foi determinada após a reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) ter ido ao município para localizar usuários prejudicados, no dia 20 de junho.
Silva comenta que a prática era antiga em Nova Hartz e nunca foi vista como errada. Agora, diz que serão estudadas novas formas de atender ao cidadão. Ele declara que "sempre" partia dos pacientes a solicitação de encaminhamento aos prestadores de serviços privados.
— As pessoas muitas vezes não querem optar pelo protocolo de espera do SUS. Por que que eles pagavam? Para ter um diagnóstico e tratamento mais rápido — justifica Silva.
As pessoas muitas vezes não querem optar pelo protocolo de espera do SUS. Por que que eles pagavam? Para ter um diagnóstico e tratamento mais rápido
ADRIÃO SILVA
Secretário de Saúde de Nova Hartz
O secretário destaca que, em alguns casos, a SMS de Nova Hartz paga integralmente por um procedimento indisponível na rede própria.
— Nós temos uma assistente social da saúde. Dependendo da análise do caso, pode ter o pagamento integral do exame. Eu não digo que são todas as pessoas que vão ganhar. Existe um parecer social. Qual é o critério? Renda — diz Silva.
O secretário afirma que a SMS de Nova Hartz faz encaminhamentos contínuos de pacientes para a regulação estadual do SUS, incluindo o Gercon. Ele menciona que, em abril, a secretaria fez o transporte intermunicipal de 1.008 pessoas para a realização de consultas, reconsultas, exames e hemodiálise pela regulação estadual do SUS, sem custos.
Sobre as clínicas privadas, confirmou que não havia contrato para a formalização dos convênios.
— Elas (clínicas) já vieram até o nosso município dizendo: "Olha, posso deixar aqui minha tabela de preço? Eu posso dar um desconto" — completa Silva.
A reportagem contatou a Já Consultas, mas não houve resposta até a publicação.
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