A Polícia Civil está investigando um médico do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Porto Alegre por omissão de socorro. Uma gravação obtida pelo GDI mostra que ele teria desligado o telefone intencionalmente enquanto conversava com a filha de uma idosa que precisava de atendimento de urgência no Bairro Belém Velho, Zona Sul de Porto Alegre.
Cardíaca e diabética, Edith Carvalho da Silva, 73 anos, morreu cerca de três horas depois. Em novembro do ano passado, ela passou mal e os filhos tiveram que ligar para o telefone 192. Durante o atendimento, o médico regulador insistiu para conversar com a paciente, mas os filhos alegavam que ela não conseguia falar.
— Ela ficou passando mal em casa, né, passou mal. O meu irmão me chamou para ajudar ele a fazer o procedimento. Ligamos pra Samu, né? O médico queria falar com a paciente, que seria a minha mãe. Ela não podia mais falar por causa do estado grave em que estava. E ele insistiu — relata a filha Jaqueline Carvalho da Silva, que é técnica de enfermagem.
A gravação confirma a insistência do médico em conversar com a idosa. Um dos filhos chega a aproximar o celular dela. Confira a transcrição de um trecho do diálogo abaixo.
Filho: — Ela tá aqui em cima da cama gemendo e se contorcendo.
Médico: — Tá falando... Então deixa eu tentar falar com ela, aí, vamos ver.
Filho: — Fala, o cara quer falar contigo aí.
Mas o que a idosa diz é incompreensível. A filha Jaqueline, então, pega o telefone, irritada e com a voz alterada.
Filha: — A paciente não consegue falar. Ela não tomou a medicação, ela está com a glicose baixa... O senhor quer que eu resuma mais para o senhor? Que ela está entrando em óbito?
Médico: — Quero, quero.
O plantonista reage dizendo que vai interromper a ligação.
Médico: — Tu para de gritar.
Filha: — Não paro de gritar (p****) nenhuma.
Médico: — Já vou desligar.
E cumpre a promessa. O chamado, então, é interrompido.
— Ele não tem o direito de se alterar porque ele é um profissional. Ele foi treinado para isso. Ele tem que perguntar, ele tem que conversar e ele tem que acalmar — queixa-se Jaqueline.
A filha acabou levando a mãe por conta própria ao hospital. Edith faleceu três horas depois.
O professor Délio José Kipper, coordenador do Comitê de Bioética Clínica na PUCRS, avaliou a conduta do plantonista.
Dificuldades para identificação
— Se foi o médico que interrompeu a ligação porque a filha se exaltou, ele cometeu um erro do ponto de vista deontológico, o que está claramente escrito no Código de Ética Médica, artigo 32, em que o médico não pode abandonar um paciente que está em risco — opina Kipper.
A partir da ocorrência registrada pela família, a delegada Ana Caruso, da Delegacia do Idoso da Capital, abriu inquérito.
— Em princípio, instauramos um inquérito de omissão de socorro. Ele teria obrigação legal de atender ao chamado dos filhos, que estavam desesperados, inclusive, e ele simplesmente se recusou a atender. Desligou o telefone e disse que, se não conversasse com a idosa, não prestaria atendimento. E não prestou — diz a delegada.
Desde fevereiro deste ano, a Delegacia do Idoso tenta identificar o médico que atendeu ao chamado por meio de quatro ofícios.
— Vamos instaurar um procedimento de desobediência para o coordenador do Samu, porque nós fizemos, no nome dele, um ofício pedindo para que nos informasse em 48 horas, isso já passado seis meses da omissão de socorro. De lá para cá, todas as nossas tentativas de contato têm sido frustradas. Eles realmente demonstram que não querem que nós conheçamos a autoria dessa omissão — diz a delegada.
Com três fontes diferentes, o GDI conseguiu identificar a voz que aparece na gravação como sendo do médico César Volésio Ribeiro Carvalho. A reportagem questionou na última segunda-feira a Secretaria de Saúde de Porto Alegre, que horas depois, respondeu aos ofícios da polícia confirmando o mesmo nome. Em nota, a secretaria anunciou abertura de sindicância e afirmou que colabora com toda e qualquer investigação.
A reportagem tentou ouvir também o médico, mas a Secretaria Municipal da Saúde decidiu que qualquer manifestação sobre o caso seria apenas por meio de nota.
Leia a íntegra da nota da Secretaria:
"A Secretaria Municipal de Saúde (SMS), por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), informa que abriu sindicância para investigar o ocorrido. A pasta se coloca à disposição para auxiliar com informações e colabora com toda e qualquer investigação seguindo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoas (LGPD). As informações pertinentes já foram direcionadas para a Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso."