Distante poucos metros da estação rodoviária de Porto Alegre, uma frota de veículos de passeio aguarda na Rua Comendador Álvaro Guaspari por interessados em viagens que partem sem autorização do poder público e sem intermediação de qualquer empresa de aplicativos.
São chegadas e saídas constantes, embarques e desembarques. As vagas disponíveis nos carros e os destinos são anunciadas aos gritos. E as reservas podem ser feitas e pagas na hora, em dinheiro, Pix ou transferências diretas aos motoristas. Em certos momentos, a demanda é tão grande que a fila chega a se estender pela Rua Santo Antônio.
A rodoviária "paralela" surgiu como ponto de partida para caronas acertadas por meio do aplicativo BlaBlaCar. Pela proposta original, como promete a plataforma francesa, o motorista que vai da origem A ao destino B oferece carona no aplicativo. Interessados em fazer o mesmo trajeto se apresentam. E os custos da viagem são divididos, sem lucro para a empresa nem para os motoristas. A ideia é apenas zerar os gastos com combustível e manutenção. Mas em um país onde a informalidade costuma virar emprego fixo, logo muitos motoristas brasileiros vislumbraram a chance de ganhar dinheiro. No lugar de apenas caronas esporádicas, passaram a oferecer viagens diárias, em veículos sem preparação para itinerários constantes e com motoristas sem habilitação para transportar passageiros, como exige o Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
Embora sigam existindo as "caronas" via aplicativo BlaBlaCar no local, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS constatou na véspera do feriadão de Natal e nos dias que antecedem ao Réveillon que viagens clandestinas também são tratadas na calçada, na hora do embarque, sem nenhuma intermediação da empresa.
Em poucos minutos no local, a reportagem conseguiu informações sobre destinos e horários.
— Só chegar aqui e falar direto comigo — contou um homem indicado por usuários como "organizador das viagens".
Com um jaleco de guardador de carros, o rapaz circula de um lado para o outro, avisando vagas disponíveis em carros prestes a partir. E também veículos que logo devem chegar ao terminal e pegar a estrada novamente. Neste cenário, junto aos carros, motoristas aguardam pelos usuários, muitos trajando chinelos. O chega e sai de pessoas é intenso. Enquanto alguns descarregam malas, outros já vão buscando espaço no bagageiro para o próximo percurso. As calçadas são como as plataformas de embarque, onde dezenas de pessoas aguardam sua vez de pegar a estrada. Até uma tenda com venda de lanches foi montada no local para atender a demanda de quem aguarda.
Mas não é só o rapaz de jaleco que organiza viagens. Na manhã do mesmo dia 21, vários usuários apontaram que é possível reservar lugares com outros "organizadores". Questionados sobre itinerários para o Litoral Norte na véspera do feriadão de Natal, os homens explicam que os valores oscilam. Costumam subir nos feriados, ficando por volta dos R$ 80 — em dias normais, o custo é de cerca de R$ 50. O responsável confirma que trajetos podem ser combinados diretamente nos locais.
— Tem carona (negociando direto) aqui, dependendo do local para onde tu vais — afirma o homem.
O sujeito chega a dizer o número de carros enviados diariamente para Capão da Canoa, destino que o repórter do GDI se mostrou interessado.
— Tem cinco, seis, até 10 carros que sobem para lá, todo dia — informa o suposto organizador.
Outro homem também participa da conversa. Ele fica sentado num escritório improvisado, com cadeira e uma mesinha. Em cima da mesa, um caderninho com anotações e alguns trocados, entre cédulas e moedas. Em seguida, o organizador questiona uma mulher que aguarda no mesmo local se ela já havia conseguido motorista para transportá-la:
— Moça, já conseguiu motorista? É que está chegando um carro aí — afirma ele, mostrando que os organizadores têm um controle prévio da chegada de carros.
Perto dali, outra pessoa aguarda um motorista que levará seu filho, menor de idade, até o município de Sarandi, no Interior. A reportagem questiona sobre a segurança da viagem e recebe a resposta de que o motorista responsável pela viagem seria um policial.
— Ele vai sozinho (o menor de idade). O cara que vai com ele é um policial. O meu outro piá pega ele quando chegar lá, em Sarandi — explica o pai.
O preço das viagens, além da falta de fiscalização, é um incentivo para a "rodoviária paralela". Quem opta pelos carros da Rua Comendador Álvaro Guaspari acaba gastando, em média, cerca de 70% do valor do bilhete do ônibus. São estes valores mais baixos e o trajetos diretos entre a Capital e as cidades - o que não é oferecido por parte dos trajetos de ônibus intermunicipais - alguns dos fatores que atraem usuários.
Até Capão, se for em um ônibus, o custo é de R$ 57. De carro, pode pagar entre R$ 28 e 42. A ida até Santa Maria fica em torno de R$ 65 a R$ 89 a "carona", enquanto de ônibus sai por R$ 124,30. Para sair do Estado, a viagem até Florianópolis é encontrada por valores que variam de R$ 85 a R$ 130 de carro, enquanto de ônibus custa R$ 145,54, sem contar as taxas.
Pelo artigo 231 do CTB, é infração efetuar "transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim". Cabe multa gravíssima e remoção do veículo. Segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), foram realizadas 43 autuações de veículos fazendo transporte clandestino de janeiro a novembro deste ano na Capital. Mas a fiscalização é difícil, pois os usuários podem alegar que apenas estão recebendo carona e a autuação só ocorre quando o transporte é feito por fora dos aplicativos de transporte.
A Polícia Rodoviária Federal constatou em 2023 um aumento de 15% nos flagrantes de transporte clandestino. Em nota, alerta para o perigo que o usuário se submete:
"Coloca em risco a vida dos passageiros devido ao estado precário dos veículos e à falta de compromisso dos infratores com questões regulamentadas, tais como inspeção veicular prévia, antecedência criminal dos motoristas, itens e equipamentos obrigatórios (pneus, extintor de incêndio, cinto de segurança) e, principalmente, a não observância aos direitos dos usuários".
O Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer-RS) afirmou que "a fiscalização de veículos de passeio cadastrados em aplicativos de carona está fora do campo de atuação do departamento".
Confira a nota completa da BlaBlaCar:
"É importante ressaltar que viagens feitas com a BlaBlaCar só podem ser realizadas por meio da plataforma, onde o caroneiro recebe as informações do membro e dentro do aplicativo, combina o ponto e horário de encontro. Qualquer viagem feita fora desses padrões não é uma viagem pela plataforma e não dispõe das diversas ferramentas de tecnologia e processos de segurança oferecidos.
A BlaBlaCar não presta serviço de transporte de passageiros individual e se difere de outros aplicativos dessa natureza, uma vez que é feita para condutores que já estão planejando uma viagem, permitindo que eles dividam os lugares vazios do seu carro com outras pessoas, e fazendo com que sua jornada seja mais econômica e agradável. A plataforma não tem como objetivo permitir que seus membros obtenham lucro. Em uma carona com a BlaBlaCar, os membros dividem apenas os custos daquela viagem.
Quando um motorista cadastrado na BlaBlaCar posta uma viagem, a plataforma sugere o preço das viagens levando em conta variáveis como distância, pedágios, tendo uma base por km rodado e os custos divididos entre os passageiros, incluindo o condutor do veículo. Também não é permitido oferecer mais do que quatro assentos nas viagens. Se ainda assim o condutor realizar uma oferta informando que tem mais de quatro assentos disponíveis, nosso time envia uma notificação informando que, caso os termos e condições da plataforma não sejam respeitados, seu bloqueio será feito imediatamente. Temos equipes e tecnologias próprias dedicadas para identificar violações aos nossos termos e condições e, caso comprovadas, banir os envolvidos.
Trabalhamos constantemente para oferecer um ambiente de viagem seguro e confiável para a nossa comunidade no Brasil. A BlaBlaCar oferece um selo de perfil verificado, disponibilizado após o usuário completar uma verificação em três etapas, que inclui checagem de documentos. A plataforma conta ainda com a ferramenta “Só para elas”, que permite que as mulheres busquem por viagens apenas com outras mulheres. Além disso, oferecemos suporte ao cliente sete dias por semana. Contamos com uma equipe de mais de 350 pessoas especializadas nesse relacionamento, que está preparada para oferecer suporte para quem utiliza a plataforma.
O cadastro dos membros na plataforma é único e serve tanto para quem oferece caronas quanto para quem pretende viajar como passageiro de carona ou de ônibus. Para isso, é necessário acessar o site ou aplicativo da BlaBlaCar, fornecer um e-mail ou se conectar com a conta do Facebook e, então, informar dados como nome completo e data de nascimento, além de escolher uma senha. Para a verificação do perfil, o usuário precisa realizar uma verificação de três etapas, feita através da checagem de e-mail, telefone e documento de identidade."
*Colaboraram Caroline Tidra e Pâmela Rubin Matge