A Polícia Civil contabiliza 94 relatos de pessoas que dizem ser vítimas do médico João Couto Neto, 46 anos, de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, afastado do trabalho por suspeita de imperícia e negligência. Desse total, 22 pessoas morreram após cirurgias feitas por ele. Muitos procedimentos foram seguidos de infecção generalizada, trombose, embolia pulmonar e outros tipos de cenários pós-operatórios.
Perícias anexadas ao inquérito conduzido pelo titular da 1ª Delegacia de Polícia do município, delegado Tarcísio Lobato Kaltbach, apontam casos em que o médico realizava uma cirurgia em um órgão e acabava perfurando outra região do corpo.
— Muitos pacientes que sobreviveram ficaram com mutilações, lesões, sequelas ou complicações. Há indícios de crueldade e desumanidade no tratamento pós-cirúrgico do médico para com os pacientes, com descaso total quanto à saúde — detalha Kaltbach.
Couto é especialista em cirurgias de hérnia, vesícula e refluxo. A maioria das operações é feita por videolaparoscopia, sobretudo no Hospital Regina, de Novo Hamburgo, mas há procedimentos realizados também em outros estabelecimentos.
A reportagem de GZH teve acesso a depoimentos detalhados de supostos erros médicos cometidos pelo cirurgião, ao longo de uma década. E também conversou com pacientes e familiares de pessoas que morreram. A maioria prefere o anonimato. Entre os casos estão cirurgias com perfurações indevidas, operação feita no lado errado do corpo — deveria ser do lado direito e a cirurgia foi no lado esquerdo do abdômen — e uma retirada de pedra na vesícula que furou o fígado de outro doente.
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Confira relatos
Vazamento de bile, infecção e retirada de parte do fígado
Uma professora sofria com leve dor causada por pedras na vesícula. Em 2021 fez uma operação com o cirurgião João Couto Neto em um hospital em Sapiranga. Uma semana depois da cirurgia começou a sentir fortes dores e teve febre alta. O médico atribuiu as dores ao fato de ela permanecer muito tempo deitada depois da cirurgia. Receitou um remédio para dores musculares e a mandou para casa.
As dores persistiram e a professora voltou com urgência ao hospital. Após uma madrugada insone e vários telefonemas para o cirurgião, ele a atendeu ao meio-dia. Conforme a professora, o médico sugeriu ao marido dela que, com R$ 20 mil, o atendimento poderia ter sido mais rápido.
Couto fez nova cirurgia e retirou grande quantidade de bile, que tinha vazado no abdômen. Ela foi mandada para casa, com dreno e curativo. Só que os vazamentos continuaram, por meio do dreno, assim como as dores. Após 24 horas ela buscou atendimento de emergência em outro hospital, em Porto Alegre, onde uma ressonância constatou grande quantidade de bile derramada.
Foi feita nova cirurgia, com mais líquido retirado. As sequelas continuaram. Um ano depois ela teve o canal da bile interrompido. Por isso, teve de retirar parte do fígado. A cirurgia foi seguida de infecção e embolia pulmonar. A paciente culpa a primeira cirurgia, feita por Couto, pela sequência de problemas de saúde.
Desmaios pela dor, perfuração do fígado e 15 quilos a menos
Uma empresária de Gravataí, Renata Bastos, passou, em 2021, por uma cirurgia para a retirada da vesícula feita por João Couto Neto. Logo depois, ela diz que começou a sentir dores insuportáveis, que inclusive a levaram a desmaiar várias vezes. Foram 10 dias sem conseguir dormir direito, com febre, derivada de uma infecção. Internada novamente, fez exames que constataram que durante a cirurgia havia sido perfurado o fígado da paciente, o que causou infecção interna generalizada.
Renata recebeu uma bolsa de colostomia em nova cirurgia feita por Couto e deixou o hospital 10 quilos mais magra, após debelar a infecção. Agora está 15 quilos mais magra. Nesse meio tempo, recebeu um dreno no lugar da bolsa.
— Quando chegou o momento de remover o dreno, o próprio médico João Couto me disse para retirar o ponto e fazer a remoção sozinha. Ele não tinha tempo, alegou — relata Renata.
Ela reclama que, de tanto ver o sofrimento da mãe, a filha precisa hoje de tratamento psicológico. A advogada Elisângela Paim, em nome de Renata, ingressou com queixa-crime contra João Couto e ação cível com pedido de indenização por danos materiais.
Perfuração do fígado, parada cardíaca e paralisia de funções cerebrais
Um morador de Sapucaia do Sul levou sua esposa para consultar com João Couto Neto, em 2014. Foi detectada a necessidade de realizar uma cirurgia para a retirada de um câncer no estômago, que resultou na extração de cerca de 50% deste órgão. A paciente ficou com abdômen inchado e exames constataram, logo após a cirurgia, que ela tivera o fígado perfurado. Ela teve hemorragia, que gerou posteriormente uma parada cardíaca.
A paciente recebeu transfusão de sangue e foi reanimada, mas a falta de oxigenação no cérebro após a parada cardíaca gerou paralisação de funções cerebrais. A paciente, conforme seu marido, ficou em estado vegetativo, e está internada em uma clínica há mais de oito anos. O marido — já aposentado — teve de voltar a trabalhar para custear o tratamento da esposa.
Vômitos e morte após cirurgia de hérnia
A dona de um comércio em Porto Alegre foi operada pelo médico João Couto Neto, em 2012, para a retirada de uma hérnia. Logo após a saída do hospital, ela começou a vomitar uma substância esverdeada, além de apresentar dores fortes e náuseas. Foi constatada perfuração de intestino em local não adequado.
A paciente realizou mais uma cirurgia, mas não se recuperou. Ficou internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) por 60 dias e morreu. Familiares asseguram que durante esse período Couto não atendia ao telefone nem retornava as ligações. A família contratou um perito que acompanhou a situação da paciente e elaborou um laudo, anexado ao inquérito. Nesse documento, o profissional afirma que a perfuração intestinal indevida foi a causadora da morte.
Leite de magnésia receitado após perfuração de intestino
Uma dona de casa de Sapucaia do Sul fez em 2021 cirurgia com João Couto Neto para retirar pedras na vesícula, mesmo sem realização de exames, relata a filha dela. A paciente, nos dias posteriores à operação, seguiu com fortes dores e passou a vomitar, sem conseguir se alimentar. O próprio Couto admitiu aos familiares que ocorrera perfuração do intestino da paciente, mas ela encontrava-se fora de perigo, pois já havia feito uma sutura no local.
Conforme a filha da paciente, o médico recomendou, por meio de mensagem via WhatsApp, que a dona de casa tomasse leite de magnésia para atenuar as dores. Ela ainda realizou mais cinco cirurgias com o mesmo médico. Os familiares dizem que isso foi feito devido a infecções que se sucederam ao procedimento inicial. A mulher morreu 70 dias após o primeiro ato cirúrgico.
Perfuração de pâncreas, vômito escuro, infecção e morte
Um microempresário de São Leopoldo passou, em 2010, por cirurgia para retirada da vesícula, num hospital de Novo Hamburgo. Conforme exames posteriores, foi constatado que o médico João Couto perfurou o pâncreas. O paciente chegou em casa e apresentou fortes dores, voltando ao hospital. O cirurgião voltou a examinar o doente e disse que estava tudo bem, embora o microempresário vomitasse um líquido escuro.
O paciente teve alta, mas continuou vomitando. A esposa dele afirma que o médico já não atendia ligações nem retornava aos pedidos de ajuda. O microempresário foi transferido para outro hospital, na mesma cidade, onde foi colocado direto na UTI. Depois, o paciente morreu. De acordo com a certidão de óbito, a causa da morte deu-se em decorrência de "disfunção de múltiplos órgãos, insuficiência renal aguda e sepse (infecção) abdominal".
Contraponto
O que diz a defesa de João Couto Neto
O advogado Brunno Lia Pires ressalta que não há unanimidade nas queixas contra o cirurgião. Ele listou pelo menos cinco pacientes que tecem elogios públicos ao médico. Diz que eles se colocam à disposição para defender Couto na Justiça, porque consideram que ele realizou um bom trabalho. Em nota, Lia Pires acrescenta:
"Em virtude de a defesa do dr. João Couto Neto não ter tido acesso à integralidade dos autos do inquérito, qualquer manifestação nesta hora seria precipitada. Importante frisar que será sim apresentada a versão do médico em momento oportuno, quando todos os documentos necessários tiverem sido aportados à investigação. A defesa tem plena certeza de que os fatos serão, com o tempo, devidamente esclarecidos, comprovando-se a completa correção nos procedimentos adotados pelo médico".