Foi em fevereiro de 2019 que a Associação Beneficente São Miguel (ABSM) surgiu como possível solução para a crônica crise financeira que assola o Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG), de Canoas, há décadas. A estimativa é de que as dívidas superem R$ 100 milhões.
O então prefeito Luiz Carlos Busato ameaçou deixar que ele fechasse, em decorrência dos débitos, mas a mantenedora do hospital, a Associação Beneficente de Canoas (ABC), assinou contrato transferindo a gestão para a ABSM.
Desde então, a prefeitura retomou aportes ao hospital, no valor mensal de R$ 1,29 milhão, com verba do SUS. Só que, em 2020, um racha na ABC resultou em uma auditoria sobre o hospital, que apontou as seguintes irregularidades, já na gestão da ABSM: falta de recolhimento de tributos federais e municipais (INSS, IRPF, PIS, Cofins e ISSQN), falta de depósito do FGTS dos funcionários e demissão dos trabalhadores de portaria e vigilância, seguida da contratação de empresa ligada à ABSM para esses serviços.
A auditoria da ABC virou ação judicial de cobrança de débitos, arquivada quando a ABSM concordou em se retirar do controle do hospital. Mas a briga não terminou. Eleito prefeito em 2020, Jairo Jorge determinou nova auditoria no HNSG, após dizer que foram encontrados vários equipamentos deteriorados e problemas nos móveis, além de salários e 13º dos funcionários em atraso.
A estimativa é de que um quarto dos R$ 100 milhões de débitos acumulados pelo hospital se refira ao período gerido pela ABSM. Não está descartada nova ação judicial, após o término da investigação contábil.
O GDI lista alguns pontos levantados pelas duas auditorias no Nossa Senhora das Graças:
Pagamentos mais vultosos em meio à pandemia
Em abril de 2019, quando o HNSG estava em funcionamento, o hospital pagou R$ 120 mil mensais à empresa responsável pelo corpo clínico. Porém, em abril de 2020, em meio à pandemia, houve cobrança de R$ 525 mil. A auditoria estranha aumento da demanda de serviços (e custos) em plena pandemia de covid-19 e aponta falta de comprovação de horas dos trabalhos prestados.
O que diz a ABSM
Rafael França, presidente da ABSM, diz que os serviços aumentaram durante a pandemia e, por isso, aconteceu aumento de despesas com médicos.
Transferências de medicamentos de um hospital para outro
Medicamentos do Nossa Senhora das Graças, adquiridos com recursos do SUS e destinados ao atendimento de pacientes do SUS, teriam sido enviados a outros hospitais administrados pela ABSM.
O que diz a ABSM
A entidade nega.
Indícios de que médicos contratados realizam serviços em outros hospitais
A auditoria informa que a empresa responsável pelo corpo clínico no HSNG também prestava serviços em outros hospitais geridos pela ABSM. E relatos, inclusive de médicos, "de que a empresa estaria cobrando o HSNG por serviços prestados em outras instituições hospitalares".
O que diz a ABSM
Rafael França nega esse tipo de atitude e desafia alguém a provar as acusações.
Contratação de parentes e amigos para serviços terceirizados
Conforme a auditoria, a ABSM contratou empresas terceirizadas com membros de suas relações ou até mesmo familiares dos associados da própria entidade para atuar no Hospital Nossa Senhora das Graças, nas áreas de segurança, portaria, serviços médicos, lavanderia, dedetização, coleta de lixo, estacionamento, manutenção, engenharia clínica, serviços farmacêuticos, advocacia e arquitetura. O próprio presidente da ABSM, Rafael Cardoso França, teria contratado uma empresa particular dele, a M3 Serviços Médicos, para prestar serviços no HNSG.
O que diz a ABSM
Rafael França admite que a sua empresa, a pessoa jurídica, prestou serviço para a ABSM. "Qual o problema? Enquanto médico eu fazia plantão no Hospital Nossa Senhora das Graças, tenho de receber de algum lugar. Como presidente da ABSM não sou remunerado. Por que não trabalhar onde faço gestão?", justifica. Ele também reconhece que alguns conhecidos foram contratados para serviços no hospital, mas não considera isso errado.
Transferência de equipamentos do hospital Beneficência para o HNSG
A auditoria afirma que a ABSM alugou equipamentos hospitalares para o HNSG, posteriormente encontrados ociosos, num contrato orçado em R$ 7 milhões. Os auditores afirmam que seria possível comprar tais equipamentos por R$ 800 mil e que o mobiliário faz parte do acervo do hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, obtido via emendas parlamentares. O caso é investigado pela Polícia Federal.
O que diz a ABSM
Rafael França diz que foi a prefeitura que requisitou os móveis, que estavam ociosos no Beneficência, porque eram para ser usados apenas em serviços do SUS. Por isso foram transferidos ao Nossa Senhora das Graças. A opção foi aluguel e não compra porque os móveis poderiam ser devolvidos. Ele diz que transferiu porque o hospital não tinha crédito para compras.
Déficit de R$ 24 milhões
A auditoria aponta que em setembro de 2019 (sob gestão da ABSM) o déficit no Hospital Nossa Senhora das Graças era de R$ 24,8 milhões, com poucos medicamentos, aumento dos empréstimos bancários e endividamento com o corpo clínico.
O que diz a ABSM
Rafael França afirma que pelo menos R$ 14 milhões dos débitos se devem à renegociação de contratos com médicos que não estavam trabalhando e voltaram a atuar. O restante é com locação de equipamentos, móveis e salas cirúrgicas, "que estavam sucateados".