O oncologista Rafael França, 45 anos, é natural de Rio Grande, formado em Medicina em 1998 pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Trabalhou nos hospitais Conceição e Santa Rita, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Voltou a Rio Grande e, de lá, teve convite para ir à Feira de Santana, na Bahia, onde atuou em oncologia por oito anos.
Em 2012, mudou-se para Gramado, após passar em um concurso para perito do INSS e ser designado para atuar no município da Serra. Voltou a trabalhar com oncologia. Na cidade, conheceu Ricardo Pigatto, administrador que viria a ser seu sócio na criação da associação para gerenciar hospitais. Em Taquara, trabalhando na Oncoprev, dentro do hospital, conheceu os donos da Associação Oncoprev, que estava desativada e acabou se tornando a Associação Beneficente São Miguel (ABSM), em 2017.
Confira os principais trechos da entrevista de França ao GDI:
A ABSM entrou no mercado tentando fazer a gestão do Hospital Arcanjo São Miguel, de Gramado, o que não conseguiu até hoje.
Ainda negociamos, queremos fechar esse negócio, talvez até o final do ano. As freiras não têm mão de obra para tocar, a saúde está cada vez mais profissionalizada, a margem de lucro está diminuindo, os custos aumentando. Se não profissionalizar a gestão, esse é um pensamento meu como médico e gestor, essas instituições religiosas vão todas acabar.
O senhor disse que a ABSM não tem dinheiro. Por que uma entidade sem dinheiro, que nem sede tem funcionando, assume negócios com dívidas milionárias, como o Hospital Beneficência Portuguesa, em Porto Alegre?
Porque aquele hospital é altamente viável pela localização, na frente da Santa Casa. Foi feita consultoria do Sírio Libanês, que embasou nossa entrada. Dizia que resgatando contrato com SUS e mais serviços suplementares era viável.
O senhor não se preocupa com a ideia de só assumir hospitais com dívidas?
Fazer gestão onde tem dinheiro é muito fácil, e não tem emprego para eu ser gestor nesses locais. Para mim, o que sobra é o osso.
Por que seu projeto no Beneficência ainda não decolou?
A meta era novo contrato com o SUS. Quando batemos na porta da prefeitura, o secretário (da Saúde) disse que não ia contratualizar com o Beneficência. Caiu nossa casa. A gente entrou com embasamento dizendo que o hospital era viável, mas a prefeitura não queria contratualizar. Não tinha o que fazer, nos quebramos. Tivemos de insistir.
O senhor via no contrato com a prefeitura, para atendimento pelo SUS, alternativa financeira para alavancar o negócio. Por que não falou com a prefeitura antes de assumir o hospital?
Não falei.
Mas depois o contrato acabou sendo feito?
Sim, mas corrigiram a dívida que o Beneficência teria com o município de R$ 3 milhões para R$ 9 milhões, fizeram correção monetária, o que acho errado, pois a prefeitura não é banco, não tem de ganhar juros e multas, tem de ganhar o serviço. Se ela contratualizou no passado mil cirurgias com o Beneficência, tem de me cobrar mil cirurgias. Esse era o nosso argumento.
A prefeitura pagou esses serviços ao Beneficência, antes da chegada de vocês, e não recebeu o serviço. Ou seja, desembolsou.
Mas se o interesse dela fosse social e não ganhar dinheiro, podia pedir que eu devolvesse as cirurgias, os serviços.
Mas vocês aceitaram o negócio e assinaram o contrato com a prefeitura.
Só quero mostrar como nós sempre fomos tratados. De R$ 3 milhões a dívida passou para R$ 9 milhões. Não consegui cumprir. Colocaram só coisa ruim para nós, o que os outros (hospitais) não queriam fazer: raio X, endoscopia. A gente até começou a fazer uma demanda de exames, mas os aparelhos começaram a estragar, hospital velho. Não quiseram repactuar. Faltou dinheiro, a gente não tinha nada.
O senhor assumiu o Beneficência sabendo dos problemas.
Eu não sou o problema, queria ser visto como parte da solução, mas não fomos vistos e tratados desta forma. Deixamos romper o contrato. Quando colocarmos o Beneficência de pé, chego lá para eles (prefeitura) e coloco o dinheiro na mesa.
Considera que deu tudo errado? O que o senhor diz do negócio Beneficência hoje?
Não acho que deu errado. A gente está há dois anos e meio à frente do hospital, sem nenhum recurso público.
A Associação Portuguesa de Beneficência, mantenedora do hospital, tem ação judicial para romper contrato com vocês, tirar a ABSM do hospital.
Eles entendem que nossa gestão é ruim. Posso dizer que, sem recurso público, nós já aportamos mais de RS 8 milhões ali dentro com receitas de outras atividades que fazemos enquanto associação, como gestão do Nossa Senhora das Graças, em Canoas, e do Lauro Reus, em Campo Bom.
Vocês assumiram com dívida em torno de R$ 120 milhões.
Não, era R$ 150 milhões.
E hoje é quanto?
Não sei. Não tenho esse levantamento.
Mas essa de R$ 150 milhões só cresceu?
Não, alguma coisa a gente pagou. Estamos fazendo negociações, fizemos um portal, um site dos credores, e temos entrado em contato com alguns.
Com as dificuldades no Beneficência e já com dívidas no Parque Belém (são R$ 945 mil cobrados na Justiça), vocês foram trabalhar no Nossa Senhora das Graças, em Canoas, também endividado. Hoje, são cobrados por eles por R$ 24 milhões em dívidas. E foram ainda atuar em Campo Bom, hospital onde seis pessoas morreram após interrupção de fornecimento de oxigênio e que está com dívidas em torno de R$ 3 milhões. É possível fazer gestão dessa forma?
Para mim não faz diferença eu dever R$ 150 milhões ou R$ 155 milhões. Tudo na vida é o primeiro milhão. Quando a pessoa ganha o primeiro milhão, o segundo nem vai contar. Eu não sei como é ter o segundo milhão, porque não tenho o primeiro milhão. E dívida é assim. Dívida não nos assusta.