A morte de seis pacientes por falta de fornecimento de oxigênio na Unidade de Tratamento Intensivo do hospital Lauro Reus, em Campo Bom, é uma tragédia bem conhecida. Foi em 19 de março e atingiu doentes de covid-19 que estavam entubados. O que poucas pessoas sabiam é que outros 15 doentes, igualmente internados naquela UTI, também morreram, horas ou dias depois. A sequência de 21 mortes chamou a atenção da Polícia Civil e de vereadores da cidade do Vale do Sinos, que investigam os fatos para verificar se a mesma falha acarretou uma mortandade muito maior do que a até agora constatada.
A morte de outros 15 pacientes, dias depois dos seis mortos em 19 de março, foi divulgada sexta-feira (14) na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) montada pela Câmara Municipal de Campo Bom para investigar a tragédia no hospital Lauro Reus.
— Todos os pacientes que estavam entubados em 19 de março morreram. Seis, naquele dia, os demais, horas ou dias depois. Queremos saber se também foi por asfixia ou por agravamento natural da doença — comenta o presidente da CPI, vereador Jerri Moraes (MDB).
Conforme levantamento apresentado pelo próprio hospital, na noite anterior à tragédia o movimento era grande: foram instalados quatro respiradores-extras. Faziam uso de oxigênio cerca de 50 pessoas: 12 delas na UTI, nove na emergência (todas entubadas) e outras 30 na unidade II (fazendo uso de Máscara de Hudson, cateter nasal e ventilação mecânica não invasiva).
Das 21 pessoas entubadas, seis morreram comprovadamente durante a interrupção no fornecimento de oxigênio por dutos aos acamados (quatro na UTI e duas na Emergência). O que até agora não tinha sido confirmado é que todas as outras 15 que também estavam entubadas quando faltou ar faleceram nos dias subsequentes.
O delegado da Polícia Civil em Campo Bom, Clóvis Nei da Silva, confirma que também investiga as outras 15 mortes de entubados.
— Vamos checar os prontuários médicos e compará-los com o relato dos familiares e pessoal do hospital. Ver se o paciente vinha evoluindo quando aconteceu a falta de oxigênio ou se a morte pode ser um agravamento progessivo do quadro da doença — pondera o policial.
O que chama a atenção, tanto dos policiais e vereadores quanto de familiares das vítimas, é que todos os entubados morreram. Isso é bem acima da média, mesmo numa doença como a covid-19, que tem ocasionado a morte de dois em cada três doentes internados nas UTIs.
“De estável, ele começou a piorar”
GZH falou com familiares de dois doentes internados na UTI do hospital Lauro Reus e que morreram dias depois das seis mortes por asfixia ocorridas em 19 de março. Um dos mortos nos dias subsequentes à falta de oxigênio na UTI foi Hélio do Amaral, 52 anos, gerente de uma fábrica de calçados em Campo Bom. Ele estava em casa quando se sentiu mal e buscou o Pronto Atendimento, por quatro vezes. Acabou internado, em 10 de março. Foi entubado em 16 daquele mês e morreu no dia 24, descreve a mulher dele, a representante comercial Suellen Elizabeth de Almeida, 35 anos.
Suellen diz que os médicos falavam que Amaral tinha prognóstico de melhora. Estava com febre, mas a perspectiva era boa. No dia 19, ela se desesperou ao ver notícias de mortes no hospital. Ligou e foi orientada a telefonar mais tarde.
— Liguei de novo, a secretária prometeu ligar, mas não ligou. Aí fui lá. Ele continuava vivo. Mas o prognóstico mudou. De estável, começou a piorar. Pelo prontuário a saturação de oxigênio do pulmão dele estava boa quando ingressou e começou a piorar desde o dia 19, quando deu pane no fornecimento de ar do hospital. Quero saber se isso matou meu marido — reclama Suellen, cujo caso é representado na Justiça pela advogada Franciele Koslowski.
Além de Suellen, Hélio do Amaral deixou a filha Isadora, de oito anos.
“Queremos saber por que ela morreu”
Aposentada, após anos trabalhando como industriária de calçados e auxiliar de padaria, Maria Rosane Kroth da Silva, 54 anos, estava internada no hospital Lauro Reus desde 13 de março. Ela tinha tentado evitar a internação, procurando ajuda médica várias vezes nos dias anteriores, até que não aguentou mais a falta de ar. O primeiro diagnóstico para covid-19 deu negativo, mas o segundo teste deu positivo para presença do coronavírus. Num primeiro momento ela recebeu ar atrávés de uma máscara, estando consciente. Depois, foi entubada.
A família se queixa de falta de informações, de vários dias em que nenhum boletim sobre o estado de saúde dela foi divulgado.
A família alimentava esperanças de que Rosane melhorasse. Conforme a sobrinha Bruna Kroth, até foi dito que o fornecimento de oxigênio a Rosane tinha sido reduzido, em decorrência da melhora.
No dia 19 os familiares se assustaram com o noticiário e correram até o hospital. Receberam orientação de aguardar boletim médico. Voltaram lá e aí os funcionários da UTI falaram que Rosane não tinha sido afetada pela pane de oxigênio.
— Mas não disseram nada da situação dela, nem para melhor, nem para pior.
A sobrinha relata que na madrugada de 22 Maria Rosane piorou e os familiares foram chamados ao hospital. A calçadista aposentada já estava morta.
— A gente quer saber por que ela morreu, do que ela morreu e se teve alguma relação com a falta de oxigênio — desabafa Bruna, que prestou depoimento à Polícia Civil a respeito da morte da tia.
CONTRAPONTOS
O que diz a Air Liquide, responsável pelo fornecimento de oxigênio ao hospital Lauro Reus:
Representantes da empresa não foram encontrados neste sábado (15). Em diversas notas a respeito da falha no fornecimento de oxigênio, a Air Liquide informou que, em 19 de março, foi acionada pelo Hospital Lauro Reus para fornecer suporte técnico e auxiliar na ativação do sistema de backup de oxigênio. “A equipe da Air Liquide prontamente ofereceu suporte remoto para a equipe de manutenção que estava no hospital. Além disso, a Air Liquide forneceu ao hospital novos cilindros de oxigênio para complementar os reservas, que já estavam cheios e em operação. Atualmente, os fatos estão sendo investigados. A Air Liquide continua colaborando com o governo local, autoridades da saúde e com as investigações em questão. O hospital já declarou publicamente que, durante o incidente, não ficou sem abastecimento de oxigênio. A central backup de oxigênio do hospital tinha um conjunto de cilindros reserva à disposição para situações emergenciais. A Air Liquide Brasil tem empenhado todos os seus esforços logísticos, operacionais e de produção para garantir o abastecimento de oxigênio a todos os hospitais que atende em diferentes cidades do País, em consonância com a sua prática de proteger vidas vulneráveis durante a pandemia”.
O que diz o hospital Lauro Reus:
Apesar de contatada, a assessoria de imprensa do hospital não deu retorno à reportagem. Por pelo menos quatro vezes desde as mortes de 19 de março, a direção do hospital informou que tem respondido a todas as solicitações levantadas pelas autoridades e “continuará colaborando para que se esclareçam o mais rápido possível todos os fatos em investigação. Reforça que: segue atendendo com o empenho e a dedicação de sempre às necessidades da população, tanto nos casos da covid-19 quanto as demais patologias prestando total assistência e salvando vidas, que é o propósito de sua existência”.