Uma casa de valor cultural, histórico e arquitetônico onde o artista Danúbio Gonçalves morou e manteve seu ateliê por seis décadas foi vendida por meio de um contrato particular de compra e venda sob suspeita de falsificação. O documento contém assinaturas do suposto vendedor e selo de reconhecimentos de firmas de tabelionato, aparentemente, fraudados. Exemplar da arquitetura moderna na Capital, o imóvel foi projetado em 1956 pelo arquiteto Nelson Souza e está localizado na Rua Engenheiro Roberto Simonsen, número 49, no bairro Petrópolis.
Danúbio foi um dos mais importantes artistas contemporâneos do Rio Grande do Sul, tendo produzido gravuras, pinturas, desenhos e murais. Entre os temas que marcaram sua obra estão as charqueadas, o trabalho dos mineiros, o balonismo e as mulheres. A casa onde mantinha seu ateliê foi projetada em 1956 pelo arquiteto Nelson Souza e é exemplo da arquitetura moderna na Capital.
Dias antes da morte do artista, aos 94 anos, em abril deste ano, familiares descobriram que a residência teria sido vendida havia três anos para o técnico em administração James Dayan Pereira Caminha, 38 anos, e revendida em fevereiro deste ano para um terceiro, o advogado Nicolas Mendes Aneli. Ele já atuou em defesa de James em processo semelhante.
Familiares afirmam que Danúbio, internado em hospital e clínicas geriátricas desde meados de 2016 até a morte, não negociou a moradia, fechada desde aquela época, e reivindicam a propriedade e a posse na Justiça. A venda por Danúbio teria sido realizada em 15 de janeiro de 2016 por R$ 580 mil, pagos à vista por James, conforme cópia do contrato particular de compra e venda apresentado à 15ª Vara Cível do Fórum Central da Capital.
O documento mostra que as assinaturas de Danúbio e James teriam sido reconhecidas pelo Tabelionato de Notas e Protestos de Taquari, no Vale do Taquari, por autenticidade. Ou seja, os dois teriam estado pessoalmente no cartório.
Surpresa com a situação, a publicitária Sandra Helena Ferreira Gonçalves, filha de Danúbio, diz que o visitava diariamente, tratando de assuntos pessoais, e assegura que o artista plástico nunca esteve em Taquari.
— Ele não tinha habilitação para dirigir, e eu sempre o levava para todos os lugares, banco, médicos. Não sei onde fica Taquari. Meu pai jamais colocou os pés nessa cidade. Os únicos dois cartórios nos quais ele foi são em Porto Alegre, e eu estava junto – diz.
A reportagem de GaúchaZH constatou que, no Tabelionato de Notas de Taquari, não existe registro de atendimento a Danúbio nem a James. Outro aspecto intrigante para Sandra é o destino dos R$ 580 mil supostamente pagos a Danúbio pela venda da casa. Segundo ela, se o pai tivesse recebido essa quantia, a família saberia:
— Eu e ele tínhamos conta corrente em conjunto. No banco não entrou nada. Onde está o dinheiro?
Contratado por Sandra para atuar no caso, o advogado Nilton Maciel Carvalho lembra que o artista plástico era viúvo e, por isso, não tinha poder exclusivo para vender a casa, pois já não era mais dono em sua totalidade:
— Ele (Danúbio) detinha 50%. A outra metade é das filhas. Elas teriam de concordar.
Carvalho ingressou na Justiça com um pedido de reintegração de posse. Ele afirma que, em abril, notificou extrajudicialmente Nicolas Mendes Aneli para que deixasse a moradia, mas isso não aconteceu. Aneli, que providenciara a troca para o seu nome da conta de energia elétrica, da água e de impostos municipais, parcelando débitos junto à prefeitura de Porto Alegre, ingressou com pedido de manutenção de posse, concedido liminarmente pela Justiça no começo de maio.
Aneli também começou a reformar a casa. A residência faz parte de um acervo de 750 imóveis no bairro Petrópolis que estão sob inventário da prefeitura – espécie de tombamento histórico.
No final de 2018, Sandra decidiu vender a casa do pai e procurou uma imobiliária. Em março, após voltar de uma viagem aos Estados Unidos, ela soube que havia pessoas na moradia.
— A corretora me ligou, dizendo que eu tinha vendido a casa sem avisá-la. E eu não sabia de nada — relata.
A situação se tornou tão desagradável que ela prefere nem passar na frente da casa erguida pelo pai, onde ela nasceu e se criou.
— Ele construiu junto um atelier, dava aulas, recebia amigos e reunia artistas. Era louco pela casa. Dizia que só sairia de lá morto. Estou perplexa. Sabia que existe muita falcatrua no Brasil, mas não neste nível — desabafa Sandra.
As dúvidas
O que precisa ser explicado no contrato de compra e venda do imóvel
- Não existe registro de que Danúbio Villamil Gonçalves e James Pereira Caminha estiveram pessoalmente no Tabelionato de Notas e Protestos de Taquari, em 15 de janeiro de 2016 para reconhecimento de assinatura por autenticidade. Os dois não têm ficha no tabelionato.
- Se os dois estivessem ido até lá, ficariam registrados no computador do tabelionato o dia, a hora, o tipo de serviço prestado, o preço da taxa paga, o número do selo, a assinatura deles digitalizada, e o nome do funcionário que os atendeu.
- As numerações que constam no selo de reconhecimento da assinatura de Danúbio e de James se referem a atendimento de outras duas pessoas.
- O selo contém um ponto e vírgula que não existe no selo autêntico, e a fonte da letra e o espaçamento entre as palavras são diferentes. Além disso, a assinatura da tabeliã substituta também diverge da verdadeira.
Contrapontos
O que diz James Dayan Pereira Caminha
A reportagem de GaúchaZH procurou James em seis endereços em Porto Alegre, Cachoeirinha e Gravataí, sem o encontrar. Também tentou contato por meio de dois telefones celulares. Em um deles, foi deixado mensagem de texto, mas ele não respondeu. De acordo com um familiar, James estaria morando em São Paulo.
O que diz o advogado Nicolas Mendes Aneli
Aneli assegura desconhecer irregularidades no contrato de compra da casa de Danúbio por James. Afirma que recebeu o imóvel como pagamento de honorários, em torno de R$ 150 mil (o preço da casa é R$ 750 mil). Diz que o saldo não foi pago, pois percebeu “que tinha alguma coisa estranha”, após receber notificações da filha de Danúbio.
O advogado afirma conhecer James desde 2015, em uma “relação de profissional e de cliente, mas jamais esteve na casa dele”. Nos últimos meses, James não atenderia telefonemas nem responderia mensagens.
– Ele foge da minha pessoa como se tivesse fugindo da polícia. Me deve honorários. Assim como ele pode ter feito outras vítimas, ele pode ter feito o próprio advogado (eu) de vítima. Jamais levaria para um registro de imóveis um contrato fraudado. Poderia ser preso. Se houve fraude, foi muito bem feita. Com as ferramentas que disponho, não descobri nada disso. Sobre reforma da casa, Aneli afirma que, “obra de restauração não precisa de autorização da prefeitura da Capital”
Em relação ao processo de venda da casa de Willi Schott, Aneli diz que não advoga mais para James. Afirma desconhecer irregularidade no negócio, e, segundo ele, a pessoa que se apresentou como herdeira de Willi não é parente, pois não pertenceria à árvore genealógica da família.