Danúbio Gonçalves (1925-2019) produziu gravuras, desenhos, pinturas e murais, mas lamentava não ter concluído uma obra: a transformação da casa-ateliê em que morou durante décadas em um centro cultural para preservar seu legado. O desejo era tão pronunciado que ele deixou de vender trabalhos para constituir o futuro acervo da instituição, segundo o relato de amigos, e chegou a elaborar por conta própria uma placa que afixou simbolicamente na fachada: “Fundação Danúbio Gonçalves”. Em seu esforço de formalizar o projeto, procurou o apoio de representantes do poder público, sem sucesso.
— A fundação era uma ideia obstinada dele – lembra o escritor Luiz Coronel, de quem foi parceiro artístico. — Tenho a impressão de que essa ideia não encontrava apoio, então ele a carregava sozinho. Encerrou seus dias sem ter realizado o grande sonho.
Localizada na Rua Roberto Simonsen, 49, no bairro Petrópolis, a casa foi projetada em estilo moderno em 1956 pelo arquiteto Nelson Souza (1925-2014), também responsável pelo projeto do antigo terminal do aeroporto Salgado Filho. Nascido em Gravataí, Souza foi professor da UFRGS e arquiteto da Divisão de Obras da universidade até 1964, quando foi cassado pela ditadura militar. Compartilhava com Danúbio a militância pela causa dos segmentos menos favorecidos.
O amplo ateliê ficava nos fundos, mas toda a casa respirava arte. Na fase final da vida, Danúbio passou a espalhar colagens nas paredes. Embora tenha viajado para observar in loco os temas de seus trabalhos, como as charqueadas, os mineiros e a prática do balonismo, era no ateliê que Danúbio transformava os esboços da observação de campo em obras.
Desde 2013, o imóvel é um bem inventariado pela prefeitura de Porto Alegre, o que lhe confere proteção jurídica como patrimônio cultural. Modificações que possam descaracterizá-lo precisam ser autorizadas pela prefeitura.
Aprovada em maio na Câmara dos Vereadores, a Nova Lei dos Inventários permitirá a um proprietário solicitar à Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) da prefeitura a inclusão ou a exclusão de seu imóvel da listagem, condicionadas a uma avaliação baseada em critérios técnicos. A nova legislação também permite ao proprietário requerer incentivos para a conservação ou restauração do imóvel.
Imóvel foi invadido e criações teriam sumido
Acometido por problemas de saúde, Danúbio jamais voltou para a casa depois que precisou ser internado em um hospital e em três instituições para idosos sucessivamente. Vazio desde meados de 2016, o imóvel foi invadido e teve eletrodomésticos saqueados, segundo a publicitária Sandra Gonçalves, filha do artista. Ela afirma que lá ficaram obras do pai e de outros artistas das quais não teve notícia desde que soube que o imóvel estava em posse de outra pessoa:
— Havia três esculturas lindas na sala, criadas pelo (artista uruguaio) Gustavo Nackle. Uma delas é um Cristo enorme, e as outras estão no jardim de inverno. Também tinha a prensa em que ele fazia gravuras, além de trabalhos, documentos, tudo.
O cineasta Henrique de Freitas Lima, que conviveu com o artista entre 2007 e 2012 para produzir o documentário Danúbio, lançado em 2012, relata ter se surpreendido ao passar em frente ao imóvel em fevereiro deste ano e constatar movimentação:
– Os operários me deixaram entrar na casa, mas não havia mais nada dentro. Inclusive parte das esquadrias havia sido furtada. Eu sabia que a casa tinha sido invadida por sem-teto. A única coisa que havia lá era a prensa.
Mais do que uma ferramenta de trabalho, a prensa representa a especialidade de Danúbio, entre as diferentes técnicas que dominava: a gravura. Foi nessa linguagem que ele criou a série Xarqueadas, nos anos 1950, considerada uma de suas obras-primas. O artista plástico Britto Velho, que frequentou a casa de Danúbio e chegou a ter, durante um período, seu próprio ateliê em uma rua vizinha, a Ferreira Viana, elogia:
– Foi um dos maiores gravadores brasileiros. Pintava e desenhava, mas a grande obra que vai ficar na história é seu trabalho como gravador. Esteve no mesmo nível de Iberê Camargo na pintura e de Xico Stockinger na escultura.
Produção pode ser vista pelo público
O trabalho de Danúbio Gonçalves começou a ganhar relevo nos anos 1950 com o Clube de Bagé (cidade onde nasceu), ao lado de artistas como Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti e Carlos Scliar, e com o Clube de Gravura de Porto Alegre. Nos seus anos de formação no Rio, estudou com Cândido Portinari. Em Porto Alegre, foi sua vez de ser mestre, lecionando no Instituto de Artes da UFRGS e no Atelier Livre, que dirigiu por 15 anos. Lá foi responsável por um renascimento da litografia artística – gravura impressa em matriz de pedra – na Capital, segundo a artista Miriam Tolpolar, sua ex-aluna:
– Com a chegada da impressão offset, a litografia caiu em desuso nos negócios, e todo aquele conhecimento se perdeu. Danúbio começou a pesquisar e a revitalizou. Graças a ele, artistas como eu e muitos outros continuam trabalhando com lito.
Seja denunciando as condições de trabalho nas charqueadas e nas minas, seja retratando mulheres, Danúbio Gonçalves gravitava principalmente em torno da arte figurativa, embora alguns de seus trabalhos tenham flertado com a abstração. Era declarado seu desprezo contra o que considerava excessos da arte contemporânea, como a arte conceitual – uma posição tida como conservadora aos olhos de criadores de vanguarda.
Passada a controvérsia, sua obra multifacetada tem sido redescoberta à luz da atualidade, como aponta o diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Francisco Dalcol, curador da exposição Danúbio, inaugurada depois da morte do artista, em abril último, aos 94 anos, e aberta para visitação até 21 de julho:
– Nas mediações com o público, percebemos um interesse renovado na série Xarqueadas pela representação de trabalhadores negros, uma herança colonial, e pela questão dos maus tratos aos animais. O artista queria denunciar a situação dos trabalhadores de modo geral, mas a obra permite essas novas leituras.
Outra oportunidade para ver trabalhos do artista é a mostra Danúbio, Arte e Amigos Artistas, em exibição até 24 de julho na Galeria Duque (Rua Duque de Caxias, 649), com obras dele e de criadores com os quais dialogou. Cerca de cem trabalhos de Danúbio do acervo da filha Sandra estão sendo comercializados. O mesmo destino terá a casa que pertenceu ao pai, que Sandra espera recuperar na Justiça para colocar à venda:
– É difícil conseguir verba para manter uma fundação, ninguém dá incentivo. Isso é uma utopia.